Joaquim de Carvalho - O Homem e a Obra, por José V. de Pina Martins

Em 1949 encontrei-me em Roma, no mês de Junho, com Cabral de Moncada. Falou-me com grande admiração da ciência de Joaquim de Carvalho, da sua inteligência e da sua informação erudita, filosófica, teológica, literária, política, pedagógica. Como viera a Roma proferir uma conferência sobre a influência de Ludovico Antonio Muratori na obra de Luís António Verney, pedi-lhe que me indicasse uma boa síntese do pensamento religioso, filosófico e jurídico do século XVIII. Respondeu-me que não conhecia nenhuma obra importante que fosse verdadeiramente uma síntese valiosa do pensamento das Luzes. Aconselhou-me, porém, a consultar Joaquim de Carvalho. «— Verá que ele vai resolver o seu problema. Carvalho sabe tudo». Quando referi a este as palavras de Moncada, sorriu com satisfação e indicou-me logo a obra de que eu precisava e de que ainda hoje me sirvo, pois o seu manuseio, apesar dos anos que passaram, é-me de grande utilidade para uma perspetiva histórica geral do pensamento iluminista.

Que o leitor me desculpe por ter rememorado, a propósito de Joaquim de Carvalho, alguns dos meus encontros com ele. Mas a sua personalidade era tão insinuante, a sua conversa tinha tanto encanto que, em meu entender, não é possível evocá-la sem recordar o que ficou desses encontros com o homem. V i-o, pela última vez, no verão de 1954, numa visita que lhe fiz à sua casa da Figueira da Foz. Recebeu-me no alto da escada, de braços abertos, com urnas botas atamancadas e calças de cotim, desculpando-se, pois estivera havia pouco no quintal. Mostrou-me a sua biblioteca. Abriu a obra de Marcel Bataillon Erasme et l'Espagne e, com orgulho, leu-me a dedicatória autógrafa. Tinha sido, aliás, através de uma apreciação de Joaquim de Carvalho que eu tivera o meu primeiro contacto com esta extraordinária figura da ciência francesa, que de 1972 a 1977 viria a ser em Paris um dos meus melhores amigos. Depois levou-me para o seu escritório, indicou-me os livros, com tiras de papel assinalando as páginas de que se servia para as suas citações, e aconselhou-me a nunca publicar trabalhos compostos em caracteres de corpo 10 e muito menos de corpo 8. Disse-me que começava a ter problemas de saúde com os olhos, tão essenciais, tão importantes para um investigador. «— Não fatigue demasiadamente a vista agora que é novo, para poder, quando for velho, ter olhos de lince. O seu estudo sobre Pascal — continuou está impresso em caracteres demasiado diminutos para mim; por isso não posso lê-lo». Voltou a falar-me de Pascal, desenvolvendo a sua teoria da doença relacionada com a evolução das ideias. Lembrei-lhe o que, anos antes, me dissera no pátio da Universidade. Acompanhou-me até à porta e ainda me perguntou o que eu pensava acerca da presença portuguesa em Goa. Com grande espanto meu, que o julgava partidário de um abandono puro e simples daquela província, disse-me: «— Goa é portuguesa desde séculos, e eis uma terra onde a autonomia pode coincidir com a continuação histórica de uma tradição. Mas este problema — lembre-se bem disso -- não é um problema político, mas civilizacional». Confesso que não compreendi então o alcance destas palavras que, aliás, a história não pôde confirmar. Mas, por outro lado, não tive dúvidas de que Joaquim de Carvalho, republicano histórico, liberal, fiel ao ensinamento do constitucionalismo oitocentista, era acima de tudo um grande patriota. Se tivesse vivido mais tempo, é possível que tivesse evolucionado, mas, em 1954, sendo um opositor do regime autoritário vigente, declarou-me, não obstante, ser favorável à presença portuguesa em Goa.

2. Joaquim de Carvalho não foi, portanto, apenas um grande mestre universitário, mas também um mestre de patriotismo, que não é de maneira nenhuma incompatível com o universalismo humanista. Como cidadão, preconizou sempre a mais larga tolerância, o respeito pelas opiniões alheias, na certeza de que todas as antíteses ideológicas são suscetíveis de composição, através da discussão civilizada e da controvérsia não inamistosa. O seu anticlericalismo significava tão-somente uma atitude de coerência exemplar com a sua visão de um poder civil independente de jurisdições eclesiásticas, e de uma jurisdição eclesial não constrangida nem ilaqueada por compromissos de ordem política. Racionalista de velha estirpe, não escondia a sua simpatia intelectual pelos grandes pensadores da liberdade de espírito, tais como Espinosa, Galileu, Francisco Sanches, Newton, Locke, Leibniz; e consequentemente pelos seus discípulos portugueses que terçaram armas num plano menos especulativo, mais concreto, do reformismo pedagógico e institucional, tais Verney e Ribeiro Sanches.

No plano da investigação científica, da pesquisa teorética e da história do pensamento e da cultura, Joaquim de Carvalho não escondeu igualmente as suas preferências intelectuais. Estas identificam-se, às vezes, com autores que tiveram uma influência fundamental na marcha do pensamento reformista, como os que acabamos de mencionar, mas nem sempre. Haja em vista os autores escolhidos (para a Biblioteca Filosófica que dirigiu), a partir de Platão, cujo Fédon admiravelmente prefaciou. Os seus primeiros trabalhos dão já uma indicação muito concreta a tal respeito: António de Gouveia, Francisco Suárez, Leão Hebreu. Embora destes três pensadores só o primeiro seja português, o segundo foi professor da Universidade de Coimbra e o terceiro, ainda que pertencendo à história da cultura italiana, nasceu em Lisboa. Joaquim de Carvalho concebeu já em 1916 o projeto de erguer uma vasta história do pensamento filosófico em Portugal, à luz das suas implicações e explicações europeias. O seu plano era o de compor, num amplo quadro sistemático (respeitando rigorosamente as categorias do processo histórico), o fresco do pensamento especulativo, tal como ele foi, através dos séculos, evoluindo em Portugal ou, fora de Portugal, definido pelos pensadores portugueses que viveram no estrangeiro: António de Gouveia, Francisco Sanches, Ribeiro Sanches, Verney e tantos outros. Perguntar-se-á se conseguiu, de facto, fazê-lo. É óbvio que o não conseguiu. As suas importantes contribuições bibliográficas, dispersas em numerosíssimos ensaios, artigos, recensões, são, todavia, uma achega de valor inestimável para que um dia investigadores competentes possam realizar, em trabalho de grupo, o que não pôde um homem só, mesmo tão extraordinário como Joaquim de Carvalho.

Apesar de um silêncio imerecido ter pesado sobre os seus livros e sobre o seu nome, ele foi o maior historiador da cultura portuguesa no presente século. Pela sua excecional preparação filosófica, estava predestinado a sê-lo. Pela base jurídica da sua formação universitária, pôde compreender, como poucos historiadores, a evolução das instituições portugueses, sobre as quais escreveu estudos primorosos de exatidão e solidez invulgares. Pela sua intimidade com os humanistas do século XVI, deixou-nos contributos valiosos para que um dia um historiador competente possa escrever uma história crítica, metódica, do Humanismo em Portugal. Não obstante todos estes créditos de significação ímpar, o nome de Joaquim de Carvalho passou ao limbo dos estudiosos ignorados. Tratar-se-á do esquecimento que geralmente ocorre, mesmo no caso de figuras gigantescas da história intelectual, nas três ou quatro décadas que se seguem à sua morte? Como quer que seja, Joaquim de Carvalho não merecia este esquecimento. O seu prestígio fora de Portugal, em países como a Itália, a França, a Espanha, os Estados Unidos e outros, foi incomparável, em relação a todos ou quase todos os intelectuais portugueses. Jacques Chevalier considerou-o como «un homme d'une parfaite droiture et un grand penseur». Américo Castro escreveu a seu respeito: «poseía un espíritu alto, noble y liberal: además era un Sabio que tenia conciencia del sentido de su saber».


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