Joaquim de Carvalho - O Homem e a Obra, por José V. de Pina Martins

Marcel Bataillon, em conversas que tivemos de 1973 a 1977, muitas vezes me falou da obra de Joaquim de Carvalho com a maior admiração e manifestou-me a sua alegria quando lhe anunciei que a Fundação Calouste Gulbenkian projetava reeditar todos os seus escritos. Investigadores de tanta categoria como Eugenio Garin, Michel Federico Sciacca, Santino Caramella, Léon Bourdon, Julián Marías e muitos outros exprimiram, quando da sua morte, em 1958, um profundo pesar pelo falecimento do eminente pensador.          

Em Portugal, quando Joaquim de Carvalho desapareceu, os melhores espíritos tiveram consciência de que se fizera um vazio, difícil se não impossível de preencher, na Universidade portuguesa e na nossa cultura.

Entre eles, Jaime Cortesão, António Sérgio, Vieira de Almeida e muitos outros exprimiram sem ambiguidade como a morte de Joaquim de Carvalho representava uma perda irreparável no plano dos estudos e da investigação. Este último exprimiu-a por palavras adequadas, que definem rigorosamente o homem e o intelectual: «Teve sempre para os homens a nobre atitude de fraterna humanidade», escreveu a seu respeito. Da sua cultura sublinhou que era uma «cultura viva e mais ainda: « [...] cultura atuante, pelo menos na orientação do pensamento inquiridor». Dois dos seus discípulos de duas gerações diferentes, um seu antigo aluno e o outro, como eu, apenas seu discípulo fora da Universidade (Alberto Martins de Carvalho e Joel Serrão), publicaram a seu respeito testemunhos que o acreditam como mestre exemplar. O primeiro escreveu: «O que era evidente era o seu gosto por uma filosofia que fosse mais inquérito e problemática que sede fechada de juízos e soluções». O segundo, por seu lado, afirmou: «Fizera dádiva da sua vida à cultura nacional e entendia de seu dever não só engrandecê-la com o seus estudos pessoais como estimular os voos incipientes dos mais novos». Pensa mento inquiridor, problemático, alergia a dogmatismos adormecedores da inteligência crítica, criar ciência mas também formar filósofos a partir do ensinamento e do estímulo dados com entusiasmo aos mais jovens: — eis o que poderá resumir, de maneira essencial e significativa, o sentido da obra de um mestre na cátedra, na comunicação magistral não universitária, na investigação.         

Escrevi acima que não fui seu aluno, pois nunca estive inscrito em disciplinas da sua orientação, mas assisti a alguns dos seus cursos, tanto pela admiração que lhe votava como por uma grande curiosidade. Tendo frequentado e seguido as lições de Rebelo Gonçalves, que um dia me deslumbrou com o seu curso sobre o humanismo do Pro Archia, quis assistir também a algumas preleções de Joaquim de Carvalho, para o conhecer como ao sábio classicista, tão prestigiado então em Portugal como no Brasil. Eram um e outro mestres excecionais, mais técnico Rebelo Gonçalves, mais académico, mais filólogo; Joaquim de Carvalho era mais problemático, mais especulativo, mais fervoroso e estimulante. Estou a vê-lo no gesto, que lhe era habitual, de tirar os óculos e de passar a mão pelos olhos, enquanto as suas palavras deslizavam na sucessão perfeita das ideias, organizadas na sua expressão frásica, como se a improvisação — que era, de resto, resultado de uma reflexão profunda—, nos oferecesse já a formulação definitiva do pensamento. Que dois grandes mestres tinha então a Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra!        

O Joaquim de Carvalho que eu conheci, de 1945-1947, tinha atingido, aos 53 anos, a plenitude da sua capacidade de reflexão crítica e de amadurecimento especulativo; tinha atingido igualmente o vértice das suas possibilidades de organização cultural, isto é de converter fecundamente a erudição e o acervo de conhecimentos em ciência viva, atuante. Não me foi dado conhecer o Joaquim de Carvalho dos anos 30, quando dirigia a Imprensa da Universidade que tantos e tão insignes serviços prestou à bibliografia portuguesa. Desse entusiasmo é prova eloquente a atividade espantosa da casa editora, extinta por decreto-lei de 29 de Agosto de 1934. Foi um dos maiores erros da jovem ditadura portuguesa. Sobre ele se exprimiu assim Marcel Bataillon: «J'avais beaucoup regretté que, à cause de la ferveur de ses convictions, [de J. de C.], on privât son pays de cette Imprimerie pour lui en ôter la direction, alors qu'il avait tant de projets importants pour l’avenir». Como se está a ver, a extinção da Imprensa da Universidade causou, mesmo no estrangeiro, uma péssima impressão. E o que é de lamentar muitíssimo é que o corpo docente da velha Alma Mater não tenha protestado contra uma medida tão obscurantista, sancionada por um governo em que havia alguns membros, aliás bons juristas, da instituição 8. Seja-nos dado formular, desta tribuna, uma sugestão a quem de direito: a melhor homenagem que poderia prestar-se à memória de Joaquim de Carvalho, depois da reedição de todos os seus escritos, seria a de restaurar, reinstituir a Imprensa da Universidade de que ele foi administrador, que, numa nova fase da sua história, poderia continuar, tendo à frente um diretor competente, retomar a sua obra extraordinária de 1921 a 1934. Em 14 anos sob a administração férvida daquele professor, a Imprensa da Universidade de Coimbra prestou ao País, no capítulo da sua cultura, serviços tão importantes que ainda hoje podem causar a admiração de todos os estudiosos que amam verdadeiramente a bibliografia nacional.

3. Embora Joaquim de Carvalho tenha falecido só há vinte anos, a reedição das suas obras completas põe problemas vários, alguns deles relacionados com a má organização das nossas bibliotecas. O critério que acabei por adotar, depois de uma longa reflexão de alguns anos —este projeto da reedição da obra completa de Joaquim de Carvalho acompanha-me desde 1963, desde há quinze anos a esta parte —, obedece a um princípio de disposição temática. Estabelecidos cinco grandes capítulos gerais para, em cada um deles, arquivar por ordem cronológica da sua publicação — portanto, grosso modo, da sua elaboração —, os estudos de Joaquim de Carvalho, a planificação geral foi assim definida:

I. FILOSOFIA E HISTÓRIA DA FILOSOFIA

II. HISTÓRIA DA CULTURA

III. HISTÓRIA DA CIÊNCIA E CRITICA

IV. PENSAMENTO POLÍTICO

V. FRAGMENTA AC MINORA

Em cada um destes enunciados gerais e em todos eles, parece-me ser possível, de maneira coerente, orgânica, incluir toda ou quase toda a produção filosófica, histórico-cultural, científica e crítica do pensador. O conjunto abarcará uma massa impressionante de estudos, de ensaios, de artigos, de recensões. O derradeiro volume conterá não apenas pequenos trabalhos que só são menores pela extensão, pois alguns deles são de grande importância, mas ainda artigos breves que andam dispersos em publicações nem sempre fáceis de ter à mão.

No primeiro volume, que agora aparece, exatamente vinte anos depois do desaparecimento do grande professor, reimprime-se a produção filosófica e histórico-filosófica até à sua maturidade. Em 1934, quando publicou o artigo sobre «Antero de Quental e a Filosofia de Eduardo de Hartmann», Joaquim de Carvalho andava pelos 42 anos. E óbvio que nem todos os escritos deste volume têm o mesmo interesse e revestem a mesma importância. Se resolvi incluir no conjunto o trabalho erudito «Sobre o Lugar de Origem dos Antepassados de Baruch Espinosa», é que essa pesquisa, sobre os maiores de um dos filósofos que ele mais amou e estudou, contribui para realçar o propósito, que então era o seu, de consagrar toda a sua vida ao estudo do pensamento filosófico de autores portugueses ou relacionados com Portugal: tal o caso de Leão Hebreu, nascido em Lisboa, mas tornado mais tarde italiano e autor de textos italianos; tal ainda o de Espinosa, holandês por nascimento, mas descendente de portugueses.


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