Joaquim de Carvalho - O Homem e a Obra, por José V. de Pina Martins

De todos estes estudos, incluídos no primeiro volume, que o mestre eminente já não apreciava excecionalmente na sua maturidade, embora a todos tenha sempre reconhecido as virtudes (que são, aliás, as de todos os seus contributos), da lucidez crítica e do rigor, num meio tão pouco apetrechado bibliograficamente como o nosso, distingamos aquele que consagrou às leituras filosóficas de Camões, como uma pesquisa ainda hoje fundamental. Este ensaio prova, aliás, o interesse de Joaquim de Carvalho pelos temas da filosofia da literatura, ou melhor das fontes filosóficas da literatura, sobretudo no nosso século de Quinhentos. O mesmo interesse viria a demonstrar mais tarde pela poesia de Teixeira de Pascoais, sobre a qual escreveu com grande agudeza artigos de excecional beleza literária, pelo amor da problemática filosófica suscitada pela poesia do autor de Marânus.  

Mas já é tempo de convidar o leitor a debruçar-se sobre os estudos do grande mestre de Coimbra. Logo na tese sobre António de Gouveia e na pequena mas notável monografia sobre Leão Hebreu, poderemos encontrar algumas lacunas bibliográficas, que são, aliás, explicáveis, à luz da nossa pobre erudição dos anos 1916-1920, como já tive ocasião de sublinhar num dos meus ensaios sobre o Renascimento. Mas que o leitor desprenda a sua atenção desses pormenores insignificantes e insignificativos, para seguir a marcha dialética, e ficará surpreendido pela clareza do pensamento, pela força da criação especulativa, pela ordem na exposição, pela amplíssima riqueza das fontes, pelo respeito dos textos analisados, pela originalidade, se não de todas, pelo menos das conclusões essenciais.             

Se alguém procurar nestas páginas o ouropel brilhante do discurso dialético subtil, do debate palavroso e lúdico, que hoje tanto impressiona muitos estudantes e até alguns professores universitários, não se digne abrir este livro: ficaria profundamente desiludido. Joaquim de Carvalho desprezava o psitacismo hedonista de certos fumistes de grande classe que hoje têm tanto êxito até em países mais evoluídos culturalmente do que o nosso e mesmo em Universidades famosas, europeias e americanas. Ele oferece-nos uma prosa substancial e sólida. O fio do seu pensar é retilíneo e límpido. Deste se poderia dizer o que um autor do século XVI escreveu da poesia de Michelangelo: ele dá-nos coisas, enquanto os outros palavras. Não é pelo desprezo da palavra que evita o discurso só profundo em aparência, mas ambíguo e vazio. E exatamente pelo seu respeito da dignidade essencial da palavra, que aproxima os homens entre si e contribui para que eles colaborem na obra fundamental da civilização, que Joaquim de Carvalho posterga a «grande» retórica do obscuro, pois Descartes, seu mestre, e também nosso, apontou-nos o caminho a seguir e que, no domínio da reflexão indagadora, é o único a poder conduzir-nos à descoberta da Verdade. Ou, pelo menos, daquela ou daquelas Verdades que nós julgamos dever procurar, na pesquisa intelectual, na investigação do conhecimento crítico, na marcha, que é a nossa, de descobrir, de inventar, de criar. Aqui, como em tudo o resto, Joaquim de Carvalho foi um mestre e é um exemplo.

Paris, 27 de Outubro de 1978.

JOSÉ V. DE PINA MARTINS


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