Morte e imanência no pensamento de Antero de Quental

Nos primeiros meses de 1874 tornou-se instável o equilíbrio psicossomático que alicerçara a alacridade espiritual da mocidade de Antero, confiante na Vida ao serviço da “Ideia”, cuja mensagem redentora jamais se apreenderia nas memórias do passado, intrinsecamente incapazes de darem sentido ao futuro e de temperarem o carácter do “homem-novo”. A máquina do seu organismo começou por então a funcionar dolorosamente, a ponto da Mãe do Poeta assim descrever o estado do enfermo em carta de 27 de Março deste ano: “muito magro, muito abatido e desanimado”, acrescentando que, quanto “a alimento, está reduzido a um caldo de extrato de carne e dois ou três ovos, e mesmo só com isto, e umas passas de uvas e uma bolacha, é preciso de vez em quando descansar um dia, estar por conseguinte 48 horas com aquele grande alimento! Toma vinho do Porto, e vinho quinado, e um vinho digestivo de pepsina, de Chassaing; está muito magro e num estado de suscetibilidade nervosa que qualquer coisa o aflige, e mesmo irrita; não gosta que se tenha cuidado nele”.

Estão longe de ser unânimes os diagnósticos da enfermidade. Os médicos que o examinaram, julgaram, uns, tratar-se de doença da espinha e outros, de histerismo (Charcot) e de dispepsia ácida, e os que posteriormente reconstituíram o quadro nosológico por informes divergiram ainda mais diversamente. O primeiro na ordem do tempo e na do desacordo e desagravos que suscitou, foi o de Sousa Martins, que julgou tratar-se de uma gastroplegia que se instalou no organismo de “um nevropata de raiz” e de “um degenerado hereditário”. A seu ver, o que importava não era a doença mas o doente, cuja constituição somática e psíquica, vítima de algumas astenias musculares, de várias fobias, de abulia e de atrofia da personalidade, cujo concurso inexorável explica “a indecisão de Antero e a sua impossibilidade de fixar demoradamente a atenção”. Por isso, ainda, “a sua obra não é criador sol que deslumbre; na arte, é uma cintilante constelação, que maravilha; na filosofia, uma vaga nebulosa, que faz cismar”. A crítica do poeta e do doutor que coexistem em Jaime Cortesãopôs a nu a inconsistência da nosografia que o insigne médico traçara numa hora de inteligente abandono a certas teorias da patologia mental então em voga.

Outros juízos clínicos, de menor teorização mas de maior densidade, concluíram pela neurastenia, “não de nascença, como nos querem persuadir [Sousa Martins], mas sim por atentados contra a higiene, principalmente cerebrais”, e, ultimamente pela estenose do piloro. Este diagnóstico, que hoje parece o mais consistente e coerente, foi expresso pelo ilustre Raul Bensaúde, que dele tirou a lógica ilação de que “tal sofrimento, hoje curável por meio de uma intervenção cirúrgica, explicaria só por si, sem recorrer a hipotéticas taras hereditárias, a profunda neurastenia que conduziu o Poeta ao suicídio”.

Se a determinação exata da doença é, assim, tema controvertido e controvertível, não o é, por seu turno, pelo menos em grau comparável, a dimensão psicológica e reflexiva do sofrimento e do mal-estar, de que nunca mais se libertou completamente. Duas fases, por assim dizer, se podem notar na marcha da sua consciência de enfermo: a do choque inicial e a desenvolução.

O choque, ou mais propriamente a constituição da consciência de enfermo, coincide com a sensação da constância da enfermidade, em princípios de 1874. Como confidenciou em carta a Oliveira Martins, o Poeta considerava-se em “estado de moribundo hipotético” e porque começava “a estar cansado, é forçoso decidir isto — se morro ou se vivo”. Pressentiu, como talvez em nenhum outro período da sua vida, a proximidade da morte, “coisa muito tediosa”, e acrescentava: “assim o tenho conhecido, apesar da alta filosofia moral, que me anima e robustece o espírito e infunde paciência e paz —, mas nem sempre se pode filosofar e moralizar: há horas más e tristes, e que as não houvesse, isto não é vida que preste...”.

Era, pelo menos, a segunda vez que no espaço de algumas semanas transmitia ao devotado amigo a resignada sensação do termo próximo da existência. “Estou realmente bastante doente, escrevia-lhe, e com poucas esperanças de melhora, antes com todas as probabilidades de progressiva agravação. É o curso natural das coisas, e não serei eu, além de naturalista, idealista, que me insubordinarei vãmente contra a ordem santa das coisas. Percebe o que quero dizer: spiritus quidem promptus est. V. leu o famoso capítulo de Proudhon na Justiça sobre o assunto: e eu tenho tudo aquilo no espírito, com o corretivo ainda do misticismo-estoico que é o meu fundo. Já vê que tenho viático para a viagem, e que as coisas se hão-de passar dignamente. Assim, pois, basta sobre isto. Não sei ainda quando chegará a hora: é possível agora (é o mais natural nesta ordem de desorganizações) que se demore ainda bastante. V. entretanto receberá a seu tempo as minhas solemnia verba”.

Com as primeiras manifestações agudas e persistentes da doença, Antero viveu, pois, a experiência da morte, cuja ideia lhe passara “despercebida” “durante muito tempo”, o que aliás corroborou anos depois, na Filosofia da Morte: “Lembra-me que quando era rapaz (embora não temesse morrer e até arriscasse a vida facilmente) evitava sistematicamente pensar na morte, porque, dizia eu, como era coisa que nunca tinha experimentado não podia ter ideia alguma dela. Mais tarde, Proudhon, depois pessoas caras mortas, a doença também”, colocaram-no perante “este facto universal”, sobre o qual pensou escrever uma “Filosofia da Morte», “no gosto daqueles tratados de Séneca e Cícero mas com mais profundidade”, de que somente chegaram até nós breves períodos, mas suficientemente reveladores do teor das suas “reflexões”, e os dois sonetos Inania regna e Eutanásia, nos quais “depositou alguns aspetos mais frisantes daquela grande realidade”.

Com estoica serenidade, sem se “insubordinar” “vãmente contra a ordem santa das coisas”, a reflexão defrontava a “grande realidade” sem que se lhe povoasse

... de larvas... a mente,

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Nem fantasmas noturnos visionários,

 Nem desfilar de espectros mortuários,

 Nem em dentro em mim terror de Deus ou Sorte

(Inania regna).

A revelação do limite da própria existência não se acompanhou do horror ao aniquilamento nem da angústia da soledade.

A doença impunha-lhe o isolamento, mas “a solidão, escrevia a Oliveira Martins, não me afeta a inteligência nem entibia o ideal: pelo contrário, é na solidão que mais me sinto viver intelectual e sentimentalmente —, mas é uma vida ensimesmada, toda interior e subjetiva, e por aí exclusiva e viciosa, levando ao esquecimento da razão positiva e do próprio bom-senso, afogado num nevoeiro de abstrações e sonhos, onde há perigo de naufragar, juntamente com a vontade e amor das coisas naturais, a própria dignidade de homem”.

“Sinto-me descer gradualmente, confidenciava ao seu íntimo Germano Vieira de Meireles, neste mesmo ano de 1874. Isto às vezes entristece-me, mas acabo sempre por me conformar. Afinal, a vida reduz-se a pouco e vale pouco. Pela minha parte, dava de boamente a minha por completa e concluída. Mas a natureza não me faz essa fineza, e o suicídio repugna a certos meus sentimentos morais. Deixo-me, pois, ir vivendo, sem bem perceber por que e para que”.


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