Evolução espiritual de Antero

O século XIX assinala em Portugal uma época sem par na pujança dos talentos e dos impulsos que despertam e dão voo às mais nobres ambições do ânimo e da inteligência. Poetas, prosadores, historiadores, cientistas, homens de carácter e modelos de lealdade, de iniciativa e de coerência, viajantes e exploradores, soldados, oradores, políticos -, de tudo conheceu e possuiu esta centúria, que desperdiçou perdulariamente os bens magníficos da Liberdade na competição de sentimentos e de ressentimentos e desenganou algumas almas de eleição com imaginários dissídios entre o senso prático das realidades e a sedução lógica dos ideais.

Sob certos aspetos, ficou aquém do século de Quinhentos, cujo amanhecer da individualização da consciência e cujo sentido realista e plástico deram às suas criações espirituais e às suas ações varonis uma alacridade festiva, uma linha escultural e uma compenetração vital com a Natureza e com a História, que o século XIX não sentiu nem podia sentir com a simplicidade, a omnicompreensão e a energia do grande século de Gil Vicente e de Camões, de Pedro Nunes e de Pedro da Fonseca, de Afonso de Albuquerque e de Fernão de Magalhães. Sucedia temporal e intelectualmente a quadras de lutas doutrinais e pedagógicas que haviam cavado abismos intransponíveis entre o realismo do pensamento tradicional, de desígnio essencialmente qualitativo, e a explicabilidade científica, de âmbito limitado e, pelo teor, de expressão maternatizante, nas quais, contemporaneamente, sob a luz da Razão una, equânime e universal, entrara em crise de estertor a conceção hierárquica da vida social.

Nasceu, assim, o século XIX sob o signo da contenda das conceções que estruturam a vida coletiva e a atividade dos indivíduos, e cresceu sob a influição do convencimento de que é próprio e digno da hominidade lutar por ideais e por imperativos da consciência moral e jurídica.

Pela índole e pela desenvolução, o Romantismo, com a estesia de Garrett, com a consciência histórica de Herculano, com a dedicação sem limites a Dona Maria II, a Menina, a Senhora e a Rainha que mais ardidamente fez pulsar o coração português, com a lealdade de Sá da Bandeira, com a coerência implacável de Mousinho da Silveira, com a emotividade feminil e com o sentimento da dignidade familiar da nova burguesia, sangue e alma do Portugal Cartista, fora já a manifestação alta e multiforme do dissídio mental e da mutação da sensibilidade que deram teor ao século, mas foi a geração antirromântica, e desta geração, acima de todos, Antero de Quental, quem levou o dissídio a fronteiras ignoradas, vivendo-o com plenitude e pensando-o com densidade metafísica, sem ligação com o passado e olhos postos no dever-ser.

Compreende-se. É que em Antero a tensão espiritual não se dirigiu ao histórico nem ao transiente, e muito menos se situou num horaciano gozo do instante. A sua consciência moral não tolerou as transações acomodatícias, e a sua arte só episodicamente refletiu as cintilações efémeras da sensibilidade, porque desejou prolongar na duração uma posição ética e conceptual que abraçasse a sensação poética ao universalismo da verdade. A sua musa, desperta e sensível, não se extasiou perante a Natureza nem se deteve apenas nas vivências puramente subjetivas, não se prendeu a escolas nem se confinou em temas de âmbito murado. A filosofia da vida humana foi o seu alvo, o universalismo, a lei do seu pensamento; por isso as suas poesias, especialmente os Sonetos, exprimem o drama de uma consciência refletida que busca ardentemente o sentido último da existência, isto é, como disse finamente Eça de Queirós, são “o sumo poético de uma agonia filosófica”.

A esta luz, Antero é um caso único na história da sensibilidade poética. Camões deu-nos o travo do sentimento da tristeza, Herculano, o do desterro, Soares de Passos, o da melancolia, José Duro, o da amargura, António Nobre, o esvaecer do sentimento vital, mas só Antero ultrapassou a vivência psicológica para se elevar a uma conceção universal da desvalia da própria existência. Poesia e filosofia compenetram-se, assim, intimamente, e a compenetração, se por um lado leva à interrogação sobre se a índole do génio anteriano foi poética ou metafísica, por outro confere permanente atualidade à sua obra, na qual, quaisquer que sejam as nossas parcialidades ou querelas, sempre encontramos a réplica ou a vibração das mais profundas inquietudes que nos incitam.

O presente ensaio, apesar de ser a refundição e desenvolvimento do livrinho que publicámos em 1929, é ainda essencialmente metodológico.

É que temos por sem dúvida que o primeiro problema a esclarecer em relação a Antero é o problema do método —, ou por outras palavras, da atitude mental com que devem ser objeto de investigação, de compreensão e, porventura, de explicação, o seu ser, o seu sentir, o seu pensar, o seu agir e o seu não-agir. E não menos por sem dúvida temos ainda, que o único método fecundo, tanto na indagação dos factos relevantes, como na respetiva coordenação e dimensão, é o método genético, ou histórico-evolutivo.

Não reprovo nem desadoro a aplicação de outros métodos, quer sejam expressionais, de matiz histórico-literário, quer vivenciais, de compenetração psicológica, porque nunca são demais as condutas que dessedentem o saber com água límpida e pura; penso, no entanto, que somente o método histórico-evolutivo jorra luz clara sobre as atitudes espirituais e as conceções doutrinais de Antero, situando-as na temporalidade em que nasceram e na sucessão em que se oferecem. Por ínfimo que seja o conhecimento da obra anteriana, o leitor isento logo nota que o mundo de ideias e de sentimentos onde ela brotou não foi um mundo fechado nem total, cuja constituição tivesse surgido de uma só vez e se mantivesse íntegro e constante no decurso da sua existência vivida. Se há uma consciência em quem as crises e as mutações se sucedem com contraste e até com polaridade, essa é a consciência de Antero; por isso, somente lhe é adequado um método que se adapte à gama cambiante dos seus estados e das suas ideias, se firme na cronologia do acontecido, se detenha no exame intrínseco dos escritos, se alargue até à correlação com a situação epocal concreta e se compenetre da transformação que sofreram as correntes estéticas e espirituais que tiveram acesso — estas e não outras — na sensibilidade do Poeta e na mente do Pensador.

A aplicação do método como que obriga, pelo menos na fase inicial, a que a atenção discrimine os períodos por que passaram a consciência e a meditação do Pensador, e posponha para mais tarde o que pode chamar-se a filosofia total de Antero. Na sua brevidade quase esquemática, as páginas que se seguem aspiram somente a suscitar a reflexão sobre a evolução do espírito de Antero, na qual julgamos ver a sucessão de três vidas ou núcleos de polarização interior — o homem-novo, o desesperado e o filósofo —, considerando como marcos capitais da expressão literária desta existência, tão revolta metafisicamente e tão estável afetivamente, as Odes Modernas, os Sonetos e as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, ou sejam, respetivamente, o manifesto da juventude, o testamento do poeta e o derradeiro ideário do sage.


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