Foram as páginas claras e sugestivas destes livros que ensinaram e convenceram Antero da verdade de algumas teses do sistema hegeliano e o persuadiram que o Homem é Homem pelo Pensamento e não pela Crença e que o Pensamento não é pensável senão na e pela Ideia.
Com efeito, a análise dos escritos anterianos, das Odes Modernas às Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, em correlação com as páginas de Vera, mostra que Antero colheu no sistema hegeliano, principalmente, três conceções: a da Ideia; a da História como desenvolução da Ideia, e a da Filosofia como sistema de explicação total.
Estas conceções coexistiram simultaneamente, não se compreendendo até qualquer delas sem as outras, mas não se deram com igual intensidade, pois as duas primeiras dominam no tempo em que deu ao prelo as Odes Modernas e a última na época em que redigiu as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX.
A conceção da Ideia, que nutre a inspiração das Odes, é de nítida filiação hegeliana. Passo algum indica com clareza que Antero distinguisse com Hegel o conceito da Ideia, ou por outras palavras, o pensamento na sua totalidade e determinabilidade em si e por si. Se não empregou as palavras pertinentes e claramente expressivas, nem por isso deixou de apreender o que constitui a essência da conceção, ou seja a capacidade da Ideia se desenvolver, devir o que é e de se compreender a si mesma mediante o próprio desenvolvimento.
A palavra mágina, de virtualidades infinitas e indefinidas, significava, dentre outras coisas, que a verdade da Ideia não é estática nem sempre a mesma, porque é uma verdade que se desenvolui, em contínuo fieri, e se conhece precisamente pelas determinações, modos e estados da desenvolução. Filosofar consiste, pois, em apreender a Ideia mediante a respetiva desenvolução, mas são de algum modo isoláveis as duas considerações do discorrer filosófico: a que se dirige ao essencial, isto é, para o Eterno, o Infinito e Total da Ideia, e a que se dirige para o histórico, isto é, para o finito e temporal das suas manifestações desenvolutivas. Desde a primeira hora, Antero ficou cativo desta conceção do filosofar, integramente racional, que expressivamente afirmou na poesia Luz do Sol, Luz da Razão (1865), de réplica à Luz da Fé, de João de Deus, “nobre poeta, que todos amamos como um ser à parte”, na qual opõe ao sentimento do numinoso a confiança na Razão, que está para a alma como o Sol, “razão do Céu”, está para o espaço.
Verdadeiramente, não se compreendem as duas considerações da Ideia uma sem a outra —, o que, aliás, não exclui que uma seja preferida à outra. A consideração do Eterno e do Infinito da Ideia, enquanto afasta a mente das objetivações finitas e temporais, acentuou-se predominantemente nos sonetos do último ciclo (1880-1884), afirmando-se logo no soneto Transcendentalismo,
Não é no vasto mundo — por imenso
Que ele pareça à nossa mocidade —
Que a alma sacia o seu desejo intenso
Na esfera do invisível, do intangível,
Sobre desertos, vácuo, soledade,
Voa e paira o espírito impassível!
Em si e em conexão com a conceção do Inconsciente, de Eduard von Hartmann, esta consideração torna-se então tema preferente; no entanto, ela subjaz nalguns versos das Odes Modernas, enquanto pressupõem a Ideia como culminação da realidade, em relação à qual as concretizações históricas são estádios transitórios.
Com efeito, a poesia À História (1865), afirmando logo a convicção de que
... o homem, se é certo que o conduz
Por entre as cerrações do seu destino,
Não sei que mão feita d'amor e luz
Lá para as bandas dum porvir divino.
Vai... mas ignora sempre quem o leva!
assenta na conceção hegeliana de que sob a História e o espírito particular das nações flui o espírito do Mundo, isto é, o alento e o destino de um pensamento universal. Sentir este espírito e pensar este pensamento é mover-se numa região independente da temporalidade e situar-se na essência da Humanidade, que se não consome no acontecer dos sucessos nem se vincula à gesta de um só povo, a todos compreendendo, e, portanto, sentir e compreender a sucessão dos acontecimentos e o encadeamento da razão que os liga e une. Este pensamento de uma coisa puramente exterior ao Homem; pelo contrário, dá-se também no mais íntimo do seu ser, realizando-se plenamente, por assim dizer, na consciência humana, que assim se torna imagem do Universo e sua potência unificadora:
A ideia, o sumo bem, o verbo, a essência
Só se revela aos homens e às nações
No céu incorruptível da Consciência!
(Son. VIII de A Ideia, (1865-1871)
Esta revelação é, sem dúvida, sinónimo de uma conceção idealista, no sentido de que as ideias constituem a realidade suprema, simultaneamente concreção e potência determinante do acontecer. A consciência humana é o seu lar supremo, mas as ideias não se dão somente no Homem, senão também no Universo.
Daqui, a visão panteísta da existência como produtos de uma essência, germe e razão de ser de tudo o que advém e aspira à vida,
Aspiração... desejo aberto todo
Numa ânsia insofrida e misteriosa
A isto chamo eu vida...
(Panteísmo, 1865-1874)
Esta conceção panteísta não tem, evidentemente, o sentido estoico ou espinosano mas o hegeliano, de desenvoluir da Ideias nos diversos estádios da sua existência:
É sempre o eterno germe, que suspenso
No oceano do Ser, em turbilhões
De ardor e luz, envolve, ínfimo e imenso!
Através de mil formas, mil visões,
O universal espírito palpita
Subindo na espiral das criações!
(Panteísmo)
A consideração da Ideia enquanto “eterno germe” e “espírito universal” fundamentou na mente de Antero a substituição do Absoluto da transcendência religiosa, em que fora educado, pelo Absoluto de uma essência imanente à realidade natural e histórica —, de tal ordem que a elaboração desta convicção filosófica constituiu um dos factores da “crise” por que passou e um dos alicerces sobre que fundou a mundividência.
Qualquer que haja sido, porém, a intensidade e amplitude da consideração do Eterno e do Infinito da Ideia, é óbvio que o que singulariza as Odes Modernas sob o ponto de vista do hegelianismo é a consideração do fieri da Ideia, ou seja, a acentuação da historicidade das manifestações desenvolutivas da Ideia.
É, esta consideração, com efeito, coerente com o juízo crítico que Antero exprimiu em 1864, a propósito da Visão dos Tempos, de Teófilo Braga, de que “o que a arte pedia aqui não era a totalidade dos períodos históricos, mas sim a verdade de um ou alguns deles”, que nutre predominantemente os temas da maior e mais significativa parte das poesias das Odes. Ela implica, como é óbvio, a noção de que a desenvolução da Ideia se opera por antagonismo e luta, em ordem à maior concretização da Liberdade —, o que, aliás, Antero não se esqueceu de bem acentuar nestes versos:
ó formas! vidas! misteriosa escrita
Do poema indecifrável que na Terra
Faz de sombras e luz a Alma infinita!
Surgi, por céu, por mar, por vale e serra!
Rolai, ondas sem praia, confundindo
A paz eterna com a eterna guerra!
Rasgando o seio imenso, ide saindo
Do fundo tenebroso do Possível
Onde as formas do Ser se estão fundindo...
(Panteísmo, 1865-1874)