Estes tópicos de hegelianismo associaram-se intimamente no espírito de Antero às conceções político-sociais de Proudhon. Anos depois, na Carta autobiográfica, Antero invocaria os “mistérios da incoerência da mocidade” para justificar que tivesse acomodado o “culto pelas doutrinas do Estado prussiano [de Hegel] com o radicalismo e o socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon”; mas, naquela hora, não notara divergências, nem as poderia ter notado, porque em Hegel não vira o filósofo da Política, mas o criador da teoria da Ideia.
Por isso, no crisol da sua irreflexão de homem moço se fundiram o revolucionarismo de Proudhon com o idealismo de Hegel, do qual aliás aquele não é independente; daí, a justificação, racional e ética, da Revolução, que
É a Luz! a Razão! É a Justiça!
É o olho da verdade!
(Carmen legis, 1863)
a inevitabilidade do Progresso, entendido como Proudhon, isto é, “como justificação da humanidade por si mesma, sob a excitação do Ideal”, anunciado pelos
Reveladores santos da Ideia,
Que, em cada hora, vão furtando à Essência
(Pater, 1864)
e, sobretudo, a caducidade inerente a todas as manifestações temporais, ou históricas, da Ideia, a que não escapa a própria Religião, que, apesar da infinidade do seu objeto, cai também na esfera do finito e do transitório.
É principalmente este último tema que Antero glosa, em verso e prosa, pois é ele que constitui o nervo da Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião liberal, publicada em 1865 e dedicada “A todos os Católicos sinceros e convictos. A todos os Hereges sinceros e convictos. Testemunho de boa fé”.
Oliveira Martins viu neste “panfleto” um “escrito repassado daquela ironia em que o paradoxo se confunde com a razão e o humor afeta ares de sinceridade. A faculdade de desdobramento mental revela-se no objetivismo com que o panfletário defendia o Ultramontanismo e a sua lógica, contra as doutrinas inconsistentes do espiritualismo; e revelava-se tão bem que mais de um ultramontano tomou o libelo ao pé da letra e que os seus argumentos chegaram a ser citados no púlpito”.
Algo de verdade contêm este fino e penetrante juízo, corroborado em parte pela autocrítica contemporânea do próprio Antero, ao escrever que o autor da Defesa da Carta Encíclica “defende o Cristianismo exatamente com o mesmo pio cuidado com que o coveiro depõe o defunto no fundo da cova!” E dizemos algo de verdade, porque o que na Defesa está em jogo é a conceção da transitoriedade do Absoluto inerente à Religião e não, propriamente, a consideração da Religião sob o ponto de vista da ironia, isto é, da atitude de espírito em que, como disse finamente Oliveira Martins, “o paradoxo se confunde com a razão e o humor afeta ares de sinceridade”. É que Antero quando escreveu estas páginas não se propôs fazer ironia, embora esta lhes seja subjacente, mas expor a consequência lógica de uma conceção geral, como aliás confessou na Carta autobiográfica a W. Storck, ao acentuar que neste escrito glorificara “o Pontífice pela beleza da sua atitude intransigente em face do século”, e vendo “nessa intransigência uma lei histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a igreja, condenada pela mesma grandeza da sua instituição a cair inteira mas não a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais liberais”. A sua mente já não pensava como liberal, isto é, sob a convicção da relatividade dos valores. Convencera-se pelas leituras de índole hegeliana, notadamente o Amour et Philosophie de Vera, que, como rotundamente afirma na Defesa, “uma só lei, um só poder, uma só alma, uma só vida” são “a ânsia da Humanidade”. A Religião, ou mais propriamente o Catolicismo, exprime esta exigência lógica e moral, como “depositária da verdade absoluta”, estruturalmente incompatível com o relativismo acomodatício da tolerância liberal. Daí, a coerência do espírito que ditou o Syllabus; simplesmente, o absolutismo e universalismo inerentes à Religião já não constituem o absolutismo e universalismo dos tempos novos, porque “a Humanidade não volta a pôr os pés nos vestígios dos passos das antigas e quase esquecidas viagens. Duas vezes não pode ela passar pelo mesmo caminho”.
Se nada persiste definitivamente no Mundo submetido a constante desenvolução até à realização integral da Ideia, a missão do Poeta não consiste em visionar o passado e ainda menos em predicar a sua ressurreição. Deuses e Reis tiveram, a seu tempo, justificação racional, mas a desenvolução da Ideia, que se opera por contrastes, rasgara em frente dos altares vazios e dos tronos despedaçados uma senda nova, que não podia ser percorrida pelo homem crédulo do passado mas pelo homem moral do futuro. Filosofia cumpre iluminar a nova via com espírito de universal compreensão e solidariedade, sem se restringir à reflexão crítica da realidade, mas antes criando-a, por assim dizer.
Tal era, nas linhas estruturais, o viático intelectual de Antero ao terminar a formatura em Direito. Saía de Coimbra com a fé robusta e vibrante na eficácia do Ideal e na convicção de que a Humanidade se encontrava numa viragem decisiva da desonvolução de novas concretizações da Ideia.
O realismo da conduta, entendido como subordinação da ação aos limites úteis do senso comum, apresentava-se-lhe como alguma coisa do ofensivo. Fugindo da adaptação ao facto, ambicionava, pelo contrário, que o facto fosse impregnado pela Ideia: daí, o imperativo de uma ação idealista sobre o mundo, a atitude necessariamente não--conformista, para a qual a “revolução” era simultaneamente um dever-ser da razão e da sensibilidade moral:
Sabeis que missa nova essa é que diz ao Povo?
E o órgão colossal que, em breve, vai soar?
Qual é o novo altar e o Evangelho novo?
E o tema do sermão que às gentes vai pregar?
O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:
Justiça, é esse o tema imenso do sermão:
A missa nova, essa é a missa da Liberdade:
E o órgão acompanhar... a voz da Revolução!
(No Templo, 1864)
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Fim desta provação, fim do tormento,
Mas da verdade, mas do bem, começo!
Erga-se o homem, atirando ao vento
O antigo mal, com trágico arremesso!
(A História, 1865)
Não se veja nestes versos panfletários a identidade do conceito de “revolução” com o de insurreição nem tão-pouco a aniquilação das aspirações do sentimento na frialdade lógica do racionalismo ou na temporalidade vicissitudinária do historismo. A “revolução” significa para Antero o que ela significava na pena de Proudhon: realização da justiça na Humanidade, pela substituição da revolução económica à revolução meramente política. E porque esta noção se não separa da conceção hegeliana do fieri da Ideia, a sua mente tem em vista a transitoriedade das fases sucessivas da evolução humana, como concretizações parciais da realização da consciência, que se vai afirmando com mais plenitude e subjetividade. Quer-se melhor testemunho que a carta a Anselmo de Andrade sobre a imortalidade, escrita em 1866?