Nesta carta, que é o seu primeiro escrito filosófico em prosa, Antero opõe-se ao conceptualismo hegeliano defendido por Vera, admitindo a oposição entre a razão e o sentimento, as duas metades da natureza humana, igualmente legítimas e verdadeiras, e cujo primado, quando chocam em conflito, cabe ao sentimento, porque a razão, isto é, a ciência, é obra dos homens. A Ciência dirá peritura a consciência, mas, ao afirmar com argumentos racionais esta conclusão, transcende abusivamente a sua função e erra, pela impossibilidade metafísica da negação ser o último verso do poema dos destinos humanos. E pergunta: “A existência atravessaria os espaços com seu voo de águia, só para no fim encontrar o nada e precipitar-se nele?”
O sentimento da imortalidade conduz o espírito a uma norma moral, e não doutrinal, “à confiança e não ao céu, a uma crença do coração e não ao código de uma igreja”. Ao mesmo tempo, porém, que a lógica sentimental, se o termo é adequado, lhe impunha a convicção da persistência da consciência humana, pela impossibilidade, afetiva e moral, do Universo se terminar no aniquilamento ou no não-ser, a razão militante, com análoga necessidade de se afirmar, conduzira-o a uma visão estética do porvir, no qual a música, a mais interior das artes, desapareceria, por não ter razão de ser. A arte tem de revelar o espírito novo, e “a música é incapaz de exprimir um estado de espírito sereno e alegre. É a arte romântica por excelência, a voz eterna do lirismo e da fantasia dolorosa. Nasceu com os fantásticos ideais, e com eles tem de morrer”.
Este vaticínio, estranho, mas explicável pela influição de quaisquer páginas de ideologia marxista, nas quais se insistisse sobre o carácter científico da conceção da sociedade socialista, considerava-o de realização inexorável, porque a reorganização do conviver humano, “em oposição com as idades religiosas e intuitivas, deveria ter por base exclusiva a razão e a experiência”.
Coerente com tal ideário, os seus versos deveriam soar a petardos; no entanto, a bondosa sensibilidade da sua índole sentiu a desumanidade implícita na conceção do idealismo como inserção da Ideia na realidade e a lucidez da sua mente apreendeu com clareza a antinomia da necessidade e da liberdade que a conceção desentranha. É o que os dois sonetos — Tese e Antítese (1870— exprimem admiravelmente:
………………………..Mas a ideia é num mundo inalterável,
Num cristalino céu, que vive estável.
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
Combatei, pois na terra árida e bruta,
Té que a revolva o remoinhar da luta,
Té que a fecunde o sangue dos heróis!
A tese pressupõe a identificação do pensamento com a inalterabilidade da Ideia e que a desenvolução desta se opera por intrínseca dialética, independente da ação individual, por forma que a atitude da consciência se torna meramente contemplativa e espectadora:
Mas a ideia é num mundo inalterável,
Num cristalino céu, que vive estável...
Tu, pensamento, não és fogo, és luz!
Assim, a Justiça enquanto essência ideal realiza-se por processo necessário e imanente à sua essência ideal, perante o qual a função da consciência, que é noética, consiste em conhecer e, porventura, em contemplar e amar a ideia de Justiça e respetivas concretizações e alienações.
A correlação da Tese com a conceção hegeliana da Ideia é, por assim dizer, óbvia. Considerada estritamente sob este ponto de vista, a Tese desentranhava a Antítese como condição do fieri da Ideia, e, portanto, uma e outra ter-se-iam constituído no espírito do Poeta dentro do hegelianismo que aprendera em Vera.
Não sofre dúvida que os dois sonetos exprimem o contraste da essência inalterável da Ideia com o conflito inerente à sua inserção na realidade que se lhe opõe, mas também não sofre dúvida que a Tese e a Antítese não foram pensadas somente como estádios da desenvolução dialética da Ideia. O contraste é posto entre o pensamento que pensa o ideal puro da Revolução — isto é, da Justiça — e a vontade que quer o ideal da Revolução, sabendo que ele se não realiza sem a impureza de dores e de fezes — e assim considerado, o contraste não nasceu somente sob a influição hegeliana, mas também e principalmente — sob a influição da conceção proudhoniana da realização da Justiça pela liberdade do querer.
A Antítese, com efeito, pressupõe que a função da consciência não é puramente noética e contemplativa, e que o Progresso, isto é, a inserção da Ideia na realidade, se alcança pela liberdade, ou por outras palavras, pela decisão da. vontade em lutar pelo ideal que palpita em “peitos” que incarnam “a ideia”. Na conceção hegeliana, a Ideia aliena-se, tornando-se consciente de si mesma, mediante a contradição que se lhe opõe. A conceção implica a existência do antagonismo, mas Polémicas, diatribes, juízos serenos, de tudo houve nesta ardorosa contenda, que durante seis meses pôs em foco os simpatizantes dos dois bandos em Lisboa, Porto e Coimbra.
Foi esta a primeira batalha de Antero, conhecida por Questão Coimbrã. Recordando-a, mais tarde, na carta a W. Storck, como que lhe fez o balanço ao escrever que, “quando o fumo se dissipou, o que se viu mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não queriam saber da Academia nem dos Académicos, que já não eram católicos nem monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica, filologia, etc.; que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e irreverência, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa-fé; e que, em suma, havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem”.
Este “alguma coisa” foi simplesmente a renovação crítica, ideológica e política, pois é no abalo produzido pela “questão coimbrã” que se encontra a nascente do curso novo da nossa cultura na segunda metade do século XIX. O homem de ação, ou mais propriamente o homem de consciência humanitária, que estava latente sob o poeta, o prosador e o discutidor loquaz, retoma então a dianteira, descendo ao terreno da luta.
À constituição íntegra da sua consciência não era bastante predicar a Revolução em versos de combate, de acordo com o pensamento de Vera de que “a função da Arte não consiste em imitar a Natureza mas em a transformar, idealizando-a” Socialista, humanitário, convicto do próximo rejuvenescimento da Humanidade pelo proletariado, a sua consciência moral impôs-lhe a ação no próprio terreno onde a luta social é mais sentida, ordenando-lhe que confundisse a voz com a que sobe das fábricas e oficinas e vivesse com as massas operárias a mesma labuta e as mesmas esperanças. “Eu quisera ter na vida, escrevia em 1865, após a publicação das Odes Modernas, a António de Azevedo Castelo Branco, a história de um grande, de um real sacrifício, que mais não fosse senão para ter direito de te dizer agora quanta santidade têm certas lágrimas, quanta plenitude de coração nos dão certos vazios da Vida”.