Evolução espiritual de Antero

Toda a gente falava deste “eco da Comunhão”. Imperturbavelmente, os sagitários do espírito renovador prosseguiram na tarefa de vulneração crítica. Durante três semanas, sucessivamente, falaram Augusto Soromenho, sobre A Literatura Portuguesa, Eça de Queirós, sobre A Literatura Nova, (o realismo como expressão nova da arte) e Adolfo Coelho, sobre O Ensino, dando largas cada um a pessoais modos de ver, mas ligados por princípios comuns, que, como disse Adolfo Coelho, “são os princípios do nosso tempo, são os característicos do espírito do nosso tempo, e quem não vive nesse espírito vive fora da história, e portanto irracionalmente”.

Os protestos, avivados semanalmente, atraíram por fim a atenção do Governo, que, perante o anúncio da conferência de Salomão Saragga sobre os Historiadores Críticos de Jesus, tomou a resolução primitiva e fácil de encerrar o Casino, proibindo a continuação das conferências.

Com a estreiteza peculiar à mentalidade soi-disant realista e ordeira, na qual a reflexão se não eleva acima dos costumes e das necessidades imediatas, os governantes de então proibiram nas Conferências o esforço pessoal de análise dos conceitos morais e políticos. A excitação do espírito de oposição foi a consequência desta política, não só em Antero, como nos meios esclarecidos e sensíveis aos princípios liberais da Carta Constitucional. Baste como testemunho sempre vivo a epístola famosa de Herculano a José Fontana.

Antero, em particular, redobrou de atividade, descendo das alturas da ideologia à ação militante.

Colabora em jornais como a República Federal (1870-1871) e o Pensamento Social (1871); tem entendimentos (1872?) com Mora, Morago e Lorenzo, emissários da secção espanhola da Internacional; organiza (1872) com José Fontana a secção portuguesa da Associação Internacional dos Trabalhadores, cujos princípios e fins expôs no opúsculo O Que é a Internacional (1871); concorre para que o Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas assuma (1872) a feição nitidamente socialista, e apresenta a sua candidatura como deputado socialista. Numa palavra, torna-se “uma espécie de pequeno Lassalle” e conhece horas “de vã popularidade” (Carta autobiográfica).

Esta ação intensa, múltipla, diversificada, era o desenvolvimento do espírito que ditara as Odes Modernas, mas em rigor não autoriza que a designemos de política, no pleno sentido da palavra. A atividade política é constituída por juízos de valor e juízos de estratégia, para empregar a clara distinção de Mannheim, e Antero se prodigou aqueles foi escasso destes, apesar de ter propugnado a ação eleitoral; por isso, se não aplicou, como Oliveira Martins, no livro Portugal e o Socialismo (1873) à organização de um programa revolucionário de ação governamental, mas, com Proudhon, ao Programa para os trabalhos da geração nova, que reputava “um caso novo na literatura lusitana”. Neste Programa, cujo original inutilizou em 1875 (?) e não chegou a concluir, trabalhou com entusiasmo desde meados de 1871, informando-se com variadas leituras e metodizando as ideias, na convicção de introduzir, como escrevia a Lobo de Moura, “no espírito público o sentimento moderno e a mesma noção do espírito científico e filosófico”. O pouco que no epistolário se colhe acerca do Programa, sugere sem sombra de dúvida que Antero teve em vista uma problemática fundamentalmente análoga à de Proudhon no De la création de l'ordre dans l'humanité ou principes d'organisation politique.

Socialismo, republicanismo e federalismo, são os nervos de tão intensa e múltipla atividade. Dois meses depois da revolução espanhola de 1868, Antero escreveu no opúsculo Portugal perante a Revolução de Espanha, que “a alta, a verdadeira missão do revolucionário, ou antes, a missão das gerações revolucionárias” consiste em “pôr de harmonia, como diz Proudhon, a política com a economia”.

A revolução política, que fora a missão histórica da burguesia, estava consumada. Ditara-lhe este juízo a conceção evolutiva da Humanidade, que ele aprendera durante os anos de Coimbra em entusiásticas leituras de Vera (Hegel), Michelet e de Proudhon, segundo a qual a história é constituída pela sucessão de períodos, nos quais a mensagem de cada classe «no momento oportuno, ou melhor, no momento fatal, tem a sua razão de ser, e como tal, a sua legitimidade, o seu direito. O sacerdócio, a aristocracia, a burguesia, trouxeram cada qual à Humanidade uma ideia nova, às sociedades uma nova organização: disseram uma palavra suprema depois entraram na sombra”. A burguesia “desorganizou o velho mundo aristocrático e monárquico, desvinculou e generalizou a propriedade, fundou a liberdade política, e inaugurou o período industrial da Humanidade”; a sua obra, que foi obra de uma classe, cujos interesses coincidiram transitoriamente com os da Humanidade, “estava conclusa”, porque, esgotada “de pensamento e de vontade” e convertida em “aristocracia do dinheiro e da propriedade”, o domínio desta “classe ávida e sem ideia não pode ser senão nocivo, letal, para o desenvolvimento revolucionário da sociedade”. A evolução da Humanidade impunha, consequentemente, novo rumo, e o facto supremo dos meados do século consistia, a seu ver, na “entrada definitiva do povo na cena da história”, ou, por outras palavras, em nova mensagem humana, cujo “fim é a destruição das classes, privilegiadas umas e outras sacrificadas, para sobre esse terreno nivelado assentar definitivamente o edifício da Igualdade e da Justiça”.

É que a sociedade contemporânea, edificada sobre o liberalismo burguês, cujo advento foi historicamente necessário mas socialmente implica “a liberdade de morrer de fome”, viver um grande combate, ao qual a Justiça tem de pôr termo: “dum lado, o trabalho, do outro, o capital; dum lado, aqueles que, trabalhando, produzem; do outro, aqueles que, sem esforço, e só porque monopolizaram os instrumentos do trabalho, terras, fábricas, dinheiro, vivem da pesada contribuição que impõem a quem, para produzir e viver, precisa daqueles instrumentos, daquele capital... É isto justo? é isto humano? Não, mil vezes não; e todavia é esta a cruel realidade! A concorrência e o salário põem o trabalho à mercê do capital; e este, sentindo-se forte, extrai do trabalhador tudo quanto ele produz, deixando-lhe apenas o suficiente para não morrer de fome, isto é, para poder continuar a trabalhar! Pois bem! o sentimento inato da Justiça diz ao povo que isto não pode ser: e a Ciência Económica demonstra-lhe que isto não deve ser. É nesta afirmação da Consciência e nesta demonstração da Ciência que consiste o Socialismo contemporâneo”.

Pensamento do povo, “destinado a ser o princípio fecundante, o elemento gerador da nova evolução”, o socialismo só pelo povo podia ser efetivado, “importando esse pensamento a negação das classes, nenhuma ousaria apresentá-lo sem se condenar ao suicídio”.

Como tudo o que começa, este pensamento apresenta-se indiferenciado. “Diz já claramente o que não quer: não diz bem ainda tudo quanto quer, e como quer”; mas a despeito de tal imprecisão, — o que aliás prova que Antero não conhecia ao tempo O Capital, de Karl Marx cuja primeira tradução francesa (1.° volume) data de 1875 —, em seu juízo o socialismo “consiste na reivindicação do direito pleno de ser homem para todos os homens: um direito efectivo, que se exprima por instituições e factos, não por estéreis declarações legais: o direito de ser homem, completamente e para todos; e instituições sociais que a todos dêem iguais condições para realizar esse direito.


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