“Daqui, a negação das classes, a necessidade de tornar universal o capital e o crédito, tornando-os gratuitos, a substituição da solidariedade e da propriedade coletiva ao regime do capital e do salário; o que tudo importa a renovação, segundo esse critério de uma justiça ampla e efetiva, de todas as nossas instituições e práticas industriais e económicas.
Daqui ainda o trabalho considerado como base única de toda a propriedade, de todo o lucro, de toda a retribuição; e a extinção ou anulação de todos os monopólios, naturais ou sociais, que embaracem o desenvolvimento pleno do trabalho e o pleno direito dos trabalhadores. Daqui, finalmente, as questões sociais consideradas superiores às questões políticas, e o socialismo dado como bandeira ao movimento das classes operárias, nessa insurreição pacífica do proletariado, que é o facto capital do século XIX.
“É. isto o que se encerra nesta palavra socialismo, e o que encerra a consciência popular, interpretada por uma ciência nova, cujo desenvolvimento tem sido paralelo com o acordar dessa consciência”.
A ciência nova é a Economia Política. Antero, porém, tinha vagas ideias gerais sobre a fundamentação científica do socialismo, colhidas umas, em Proudhon, e outras na literatura, mais ou menos jornalística, inspirada no marxismo. O seu socialismo era essencialmente moral, o seu intento “acompanhar a manifestação da ideia nova que surge no seio das plebes”, a sua divisa, “crítica e reforma das instituições, paz e tolerância aos homens”.
Sempre os grandes rasgos políticos da nossa gente foram alentados por aspirações morais, de sorte que esta nota comum e constante não singulariza qualquer ideário político-social, considerado em geral. Comparado aos anteriores movimentos liberais, que foram essencialmente movimentos de doutrinários e de conspiradores que ambicionavam colocar o País perante uma situação de facto, o socialismo de Antero anunciava -vagamente o advento político das “massas” e não propriamente o de um novo partido.
Já não acreditava que um grupo de iluminados resolutos pudesse desentranhar das suas ações o progresso social e que este pudesse resultar do simples jogo da livre iniciativa dos indivíduos; a seu ver — e por isso era socialista — o intelectual e o artífice estavam ligados pelos mesmos vínculos de solidariedade social e vivem o mesmo veemente desejo de uma vida mais justa, que só pode ser a resultante de uma política do Estado.
Quando se desce do vago das aspirações morais ao terreno das ideias claras e precisas, topa-se inevitavelmente com a influência predominante e decisiva de Proudhon sobre o pensamento político-social de Antero. O fraseado de sabor marxista, que aqui e além irrompe da sua prosa de militante do “partido”, é meramente superficial, pois Antero jamais se libertou da influência decisiva destes livros de Proudhon: De la Justice dans la Révolution et dans l'Eglise (1858), Système des contra-dictions éconamiques ou Philosophie de la misère (1846) e De la création de l'ordre dans l'humanité (1843). Não contesto a possível influência do Manifesto Comunista, de Marx, apontada por Luis Washington, e com este crítico reconheço que “Antero fez próprios os princípios da Internacional e as palavras de Marx no preâmbulo dos Estatutos da Associação dos Trabalhadores (ob. cit., 21) e “acompanhou de perto o Congresso da Haia (1872) (ib., 24).
São factos que parecem bem estabelecidos e fundados, mas exprimem um momento da ação e não a medula da formação e do pensamento. E que foi Proudhon, e não Marx, quem, nos anos de Coimbra, converteu Antero ao Socialismo e o convenceu definitivamente de que a Política não consiste em harmonizar interesses de possidentes e que o triunfo da Justiça social se possa alcançar pela discussão parlamentar.
Mergulham em Proudhon as raízes da sua crítica à propriedade individual, ao salariato e à concorrência; a noção de que somente o trabalho é produtivo; a missão nova do povo e, sobretudo, a ideia, hostil à ditadura do proletariado, a qual tem presidido ao socialismo português, de que o triunfo popular trará a extensão fraterna das mesmas liberdades a todos os indivíduos e, ainda, além de outras conceções histórico--filosóficas, a feição do seu antiultramontanismo (Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX contra a chamada opinião liberal, 1865) e a nova fundamentação, mais sociológica que histórica, do federalismo.
O manifesto da Associação Internacional dos Trabalhadores (1846) e a literatura a que ele deu ensejo, puseram-no em contato com algumas ideias marxistas, que Antero aceitou talvez sem a consciência crítica do rumo que imprimiriam ao Socialismo, integrando-as, em síntese um tanto confusa, com o fundo das ideias de Proudhon. Por isso, dentre outras consequências, a infiltração marxista não lhe contaminou a sensibilidade patriótica nem lhe afetou a atividade criadora, enquadrando-o e comprometendo-o na plenitude do seu ser. Em momento de azedume saiu-lhe da pena aquele depreciativo e arrepiante “Portugalório”, mas nem a palavra nem o momento em que a soltou podem fazer esquecer que sentiu Portugal como unidade cultural, quando escreveu a Causa da Decadência dos Povos Peninsulares, e como emoção de um destino coletivo, aquando do Ultimatum, e que período algum das suas prosas de militante reduzem o sentimento ou o conceito de Portugal a mera unidade económica ou secção regional.
Na essência, o revolucionarismo de Antero traduzia a aspiração do conservador de uma ordem social mais justa e equitativa, a instaurar. Nem revolução permanente, nem luta de classes, nem ditadura do proletariado, nem materialismo dialético, nem mesmo qualquer interpretação das ideias morais com o sentido que o materialismo histórico considera superestrutura: pura afirmação do pensar filosófico e do sentido moral, tão pura que, perante a eticidade do seu socialismo, a fundamentação científica e as dissidências doutrinais e de técnica de ação mal se fazem ouvir. E, no entanto, Antero e os companheiros das Conferências do Casino tinham a ilusão de que o pensavam com objetividade científica, isto é, como escreveu Eça de Queirós (Maio, 1871), com ressaibo da caracterização da atitude comunista dada por Marx no Manifesto de 1848, apresentavam “a revolução serenamente —, como uma ciência a estudar. Não o fariam mais tranquilamente se se tratasse de anatomia” (As Farpas).
Os dezassete sonetos que constituem o terceiro ciclo do seu livro imperituro, correspondentes à década de 1864-1874, são a expressão poética da alacridade espiritual de Antero, da sua confiança na Vida, do indomato amore de uma alma consciente da sua missão e da universal solidariedade dos seres.
Antero jamais contemplou a Natureza em si mesma, extrovertendo-se na paisagem como paisagem, mas nesta década a compenetração do pensamento e da ação como que o conduz, romanticamente, a ver na Natureza uma projeção do eu. A hora meridiana, estuante de vida, é então como que a imagem da sua alma, e a noite surge-lhe esponta-neamente, irresistivelmente, como o cenário lúgubre de torpezas e desvarios:
Amem a noite os magros crapulosos,
E os que sonham com virgens impossíveis,
E os que se inclinam, mudos e impassíveis,
À borda dos abismos silenciosos.
…………………………….
Eu amarei a santa madrugada
E o meio-dia, em vida refervendo,
E a tarde remorosa e repousada.
Viva e trabalhe em plena luz: depois,
Seja-me dado ainda ver, morrendo,
O claro Sol, amigo dos heróis!
(Mais Luz!)