Evolução espiritual de Antero

Exalta a razão, por que ela é a ordem e a medida de todas as coisas, como um racionalista do século das luzes, a essência do Universo infinito e a raiz das ações humanas:

Razão, irmã do amor e da Justiça,

Mais uma vez escuta a minha prece.

É a voz dum coração que te apetece,

Duma alma livre, só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça

De astros e sóis e mundos permanece;

E é por ti que a virtude prevalece

E a flor do heroísmo medra e viça.

(Hino à Razão)

Esta razão, latente na essência das coisas, leva-o a divinizar a Natureza como potência cósmica, a ver nela o desenvolvimento necessário duma força, quase direi de uma substância, que, através das suas multímodas diversificações, guarda intacta a criatividade imanente:

Nas florestas solenes há o culto

Da eterna, íntima força primitiva:

Na serra, o grito audaz da alma ativa,

Do coração, em seu combate inculto;

No espaço constelado passa o vulto

Do inominado Alguém, que sóis aviva;

No mar ouve-se a voz grave e aflitiva

Dum deus que luta, poderoso e inculto.

(Justitia Mater)

O poeta, encarnação desta força, tem a cumprir a missão profética de revelar o Futuro e de converter o seu verbo em «espada de combate»:

Escuta! é a grande voz das multidões!

São teus irmãos, que se erguem!

São canções... Mas de guerra... e são vozes de rebate...

Ergue-te pois, soldado do Futuro,

E dos raios de luz do sonho puro,

Sonhador, faze espada de combate!

(A um Poeta)

Todas as atitudes da vida espiritual de Antero durante este período se podem sintetizar nestes dois versos do terceiro soneto da série a Ideia:

Força é pois ir buscar outro caminho!

Lançar o arco de outra nova ponte

Por onde a alma passe — e um alto monte

Aonde se abra à luz o nosso ninho.

“Lançar o arco de outra nova ponte” -- era o alvo da sua vida, o móbil do seu pensamento e da sua ação.

 

O DESESPERADO

Nos primeiros meses de 1874 tornou-se instável o equilíbrio psicossomático que alicerçara a alacridade espiritual da mocidade de Antero, confiante na Vida ao serviço da “Ideia”, cuja mensagem redentora ele pensava que jamais se aprenderia nas memórias do passado, intrinsecamente impotentes para darem sentido ao futuro e temperarem o carácter do “homem-novo”. “O arco da nova ponte” a lançar para a caminhada do Futuro, assentava em dois pilares: ideologicamente, na convicção de que a Realidade é objetivação do Espírito; e vitalmente, no equilíbrio entre o pensar e o querer. O pilar ideológico manteve-se como constante do pensar anteriano, apesar de abalado pela inserção de elementos não-racionais da desvaloração pessimista; não assim o pilar de raiz vital.

É que a máquina do seu organismo começou por então a funcionar dolorosamente, a ponto da Mãe do Poeta assim descrever o estado do enfermo em carta de 27 de Março deste ano de 1874: “muito magro, muito abatido e desanimado”, acrescentando que, quanto “a alimento, está reduzido a um caldo de extrato de carne e dois ou três ovos, e mesmo só com isto, e umas passas de uvas e uma bolacha, é preciso de vez em quando descansar um dia, estar por conseguinte 48 horas com aquele grande alimento! Toma vinho do Porto, e vinho quinado, e um vinho digestivo de pepsina, de Chassaing; está muito magro e num estado de suscetibilidade nervosa que qualquer coisa o aflige, e mesmo irrita; não gosta que se tenha cuidado nele”.

Estão longe de ser unânimes os diagnósticos da enfermidade. Os médicos que o examinaram, julgaram, uns, tratar-se de doença da espinha, outros, de histerismo (Charcot) e de dispepsia ácida, e os que posteriormente reconstituíram o quadro nosológico por informes divergiram ainda mais diversamente. O primeiro na ordem do tempo e na do desacordo e desagravos que suscitou, foi o de Sousa Martins, que julgou tratar-se de uma gastroplegia que se instalou no organismo de “um nevropata de raiz” e de “um degenerado hereditário”. A seu ver, o que importava não era a doença mas o doente, cuja constituição somática e psíquica, vítima do concurso inexorável de algumas astenias musculares, de várias fobias, de abulia e de atrofia da personalidade, explicava “a indecisão de Antero e a sua impossibilidade de fixar demoradamente a atenção”. Por isso, ainda, “a sua obra não é criador sol que maravilha; na filosofia, uma vaga nebulosa, que faz cismar”. Sousa Martins teve razão enquanto considerou Antero “um bom caso” clínico, deixando de a ter ao afirmar que ele fora um “doente ab ovo” como mostrou a crítica do poeta e do doutor que coexistem em Jaime Cortesão que pôs a nu a inconsistência da nosografia que o insigne médico traçara numa hora de inteligente abandono a certas teorias da patologia mental, então em voga.

Outros juízos clínicos, de menor teorização mas de maior densidade, concluíram pela neurastenia, “não de nascença, como nos querem persuadir [Sousa Martins], mas sim por atentados contra a higiene, principalmente cerebrais”, e, ultimamente, pela estenose do piloro. Este diagnóstico, que hoje parece o mais consistente e coerente, foi expresso pelo ilustre Raul Bensaúde, que dele tirou a lógica ilação de que “tal sofrimento, hoje curável por meio de uma intervenção cirúrgica, explicaria só por si, sem recorrer a hipotéticas taras hereditárias, a profunda neurastenia que conduziu o Poeta ao suicídio”.

Se a determinação exata da doença é, assim, tema controvertido e controvertível, não o é, por seu turno, pelo menos em grau comparável, a dimensão psicológica e reflexiva do sofrimento e do mal-estar de que nunca mais se libertou completamente. Duas fases por assim dizer, se podem notar na marcha da sua consciência de enfermo: a do choque inicial e a de desenvolução.

O choque, ou mais propriamente a constituição da consciência de enfermo, coincide com a sensação da constância da enfermidade, em princípios de 1874. Como confidenciou em carta a Oliveira Martins, o Poeta considerava-se em “estado de moribundo hipotético” e porque começava “a estar cansado, é forçoso decidir isto — se morro ou se vivo”. Pressentiu, como talvez em nenhum outro período da sua vida, a proximidade da morte, “coisa muito tediosa”, e acrescentava: “assim o tenho conhecido, apesar da alta filosofia moral, que me anima e robustece o espírito e infunde paciência e paz —, mas nem sempre se pode filosofar e moralizar: há horas más e tristes, e que as não houvesse, isto não é vida que preste...”.

Era, pelo menos, a segunda vez que no espaço de algumas semanas transmitia ao devotado amigo a resignada sensação do termo próximo da existência. “Estou realmente bastante doente, escrevia-lhe, e com poucas esperanças de melhora, antes com todas as probabilidades de progressiva agravação. É o curso natural das coisas, e não serei eu, além de naturalista, idealista, que me insubordinarei vãmente contra a ordem santa das coisas. Percebe o que quero dizer: spiritus quidem proptus est. V. leu o famoso capítulo de Proudhon na Justiça sobre o assunto: e eu tenho tudo aquilo no espírito, como o corretivo ainda do misticismo-estoico que é o meu fundo. Já vê que tenho viático para a viagem, e que as coisas se hão-de passar dignamente. Assim, pois, basta sobre isto. Não sei ainda quando chegará a hora: é possível agora (é o mais natural nesta ordem de desorganizações) que se demore ainda bastante. V. entretanto receberá a seu tempo as minhas solemnia verba”.


?>
Vamos corrigir esse problema