Evolução espiritual de Antero

Com as primeiras manifestações agudas e persistentes da doença, Antero viveu, pois, a experiência da morte, cuja ideia lhe passara “despercebida” “durante muito tempo”, o que aliás corroborou anos depois, na Filosofia da Morte: «Lembra-me que quando era rapaz (embora não temesse morrer e até arriscasse a vida facilmente) evitava sistematicamente pensar na morte, porque, dizia eu, como era coisa que nunca tinha experimentado não podia ter ideia alguma dela. Mais tarde, Proudhon, depois pessoas caras mortas, a doença também” colocaram-no perante “este facto universal”, sobre o qual pensou escrever uma “Filosofia da Morte”, “no gosto daqueles tratados de Séneca e Cícero mas com mais profundidade”, de que somente chegaram até nós breves períodos, mas suficientemente reveladores do teor das suas “reflexões”, e os dois sonetos Inania regna e Eutanásia, nos quais “depositou alguns aspetos mais frisantes daquela grande realidade”.

Com estoica serenidade, sem se “insubordinar” “vãmente contra a ordem santa das coisas”, a reflexão defrontava a “grande realidade” sem que se lhe povoasse

... de larvas... a mente,

Nem fantasmas noturnos visionários,

Nem desfilar de espectros mortuários,

Nem em dentro em mim terror de Deus ou Sorte

(Inania regna)

A revelação do limite da própria existência não se acompanhou, pois, inicialmente, do horror ao aniquilamento nem da angústia da soledade.

A doença impunha-lhe o isolamento, mas “a solidão, escrevia a Oliveira Martins, não me afeta a inteligência nem entibia o ideal: pelo contrário, é na solidão que mais me sinto viver intelectual e sentimentalmente —, mas é uma vida ensimesmada, toda interior e subjetiva, e por aí exclusiva e viciosa, levando ao esquecimento da razão positiva e do próprio bom-senso, afogada num nevoeiro de abstracções e sonhos, onde há perigo de naufragar, juntamente com a vontade de amor das coisas naturais, a própria dignidade de homem”.

“Sinto-me descer gradualmente, confidenciava ao seu íntimo Germano Vieira de Meireles, neste mesmo ano de 1874. Isto às vezes entristece-me, mas acabo sempre por me conformar. Afinal, a vida reduz-se a pouco e vale pouco. Pela minha parte, dava de boamente a minha por completa e concluída. Mas a Natureza não me faz essa fineza, e o suicídio repugna a certos meus sentimentos morais. Deixo-me, pois, ir vivendo, sem bem perceber por que e para que”.

Se acaso algum resíduo da crença religiosa da adolescência ainda latejava no fundo da sua alma, a antevisão da morte dissipou-o definitivamente, porque a sua mente de “naturalista” e de “idealista” afastara por incongruente com a “ordem natural das coisas” qualquer recurso à transcendência divina, qualquer explicação fora do terreno da causalidade natural e lógica, qualquer consolo fora da integração da consciência no ser profundo e moral da Humanidade. Confortava-o e robustecia-lhe o ânimo uma “alta filosofia moral”, convencendo-o de que não corria o “perigo” de “pensar só e isolado da comunhão do pensamento geral” infundindo-lhe “paciência e paz” e dando-lhe o “viático para a [derradeira] viagem”, e esta filosofia outra não era que a imanência plena e necessária de todo o acontecer, assim físico como humano.

O pressentimento da proximidade da morte, que frequentemente abre a via da conversão religiosa, apesar de ocorrer em plena pujança do talento e de se dar num quadro de fogoso incentivo de ação reformadora, não lhe quebrantou o ânimo com a inquietude do destino, nem o desligou da Natureza, gerando-lhe a sensação da soledade e com ela a do desapego e aniquilamento dos seres e coisas que enchem a existência que vive e convive afetivamente.

Na história das vicissitudes da consciência, Antero deu-nos com esta experiência um exemplo revelador do seu ser profundo e altamente significativo da sinceridade e coerência com que viveu as questões filosóficas, ou mais propriamente, a reflexão acerca dos fins éticos e culturais como tarefa suprema do homem e da Humanidade.

Ao contrário de Pascal, que no êxtase da noite do que se chama a sua “segunda conversão”, em comunhão “com o Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob”, atingiu a certeza plena e a renúncia total e ditosa a “l'usage délicieux et criminel du monde”, Antero sentiu que a Morte é um acontecimento que não afasta a consciência da solidariedade humana e que se realiza e esgota na imanência da ordem universal que enlaça tudo o que ocorre no Universo.

 

Longe de lhe retrotrair a sensibilidade e a mente aos caminhos da transcendência e da crença da meninice, a experiência que vivia conduziu-o, sem temor e sem angústia, a procurar uma resposta ao problema da Morte na sequência da “filosofia da Revolução”, que professava, e na do hegelianismo, que lhe formara o espírito de “homem novo”.

Hegel abrira-lhe o caminho com a negação da transcendência divina e Proudhon foi seu companheiro e guia na marcha desta senda, designadamente com o quinto estudo (L'éducation), especialmente nos capítulos V e VI (L'homme en face de la mort), do De la Justice dans la Révolution et dans l'Église. Nestas páginas do “Mestre”, que não só lhe falava à inteligência, mas a todas as “potências humanas”, colheu

Antero não só a têmpera e disposição de ânimo perante a Morte, para as quais, aliás, o predispunha o “fundo” nativo do “misticismo-estoico”, mas ainda o teor da conceituação das poesias de que é tipo o soneto Eutanásia:

Que nome te darei, austera imagem,

Que avisto já num ângulo da estrada,

 Quando me desmaiava a alma prostrada

Do cansaço e do tédio da viagem?

Em teus olhos vê a turba uma voragem,

Cobre o rosto e recua apavorada...

Mas eu confio em ti, sombra velada,

E cuido perceber tua linguagem...

Mais claros vejo, a cada passo, escritos,

 Filhos da noite, os lemas do Ideal,

Nos teus olhos profundos sempre fitos.

Dormirei no teu seio inalterável,

 Na comunhão da paz universal,

Morte libertadora e inviolável!

Este soneto dá-nos a posição espiritual do Poeta perante a sua experiência do termo próximo da existência, que avistava “já num ângulo da estrada”. Diz-nos que exalaria o derradeiro suspiro eutanasicamente, isto é, sem sofrimento, mas não aponta nem sugere a razão por que acolheria a Morte como “libertadora”, em cujo “seio inalterável” dormiria “na comunhão da paz universal”, que é a segunda condição da eutanásia, segundo Proudhon. Confessa que “cuida perceber a linguagem” da Morte, mas não expressa uma só palavra que desvende com clareza o que tinha na mente; é legítimo, porém, admitir que a razão em virtude da qual os sonetos que têm a morte por tema “não são um paradoxo”, se encontra na conceção da imanência, trave mestra da fundamentação filosófica do Programa para os Trabalhos da Geração Nova em que por então trabalhava, e na necessidade metafísica do termo da existência dos seres limitados, que as duas páginas do Ensaio sobre as Bases Filosóficas da Moral, ou Filosofia da Liberdade, que têm por título “Filosofia da Morte” e “A Metafísica da Morte”, procuram justificar.


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