Evolução espiritual de Antero

A vida espiritual de Antero é uma totalidade caracterizada pela sucessão de alguns rasgos fundamentais; por isso, o estabelecimento destes núcleos de polarização interior não significa que a cindamos por cortes longitudinais nem que entre eles cavemos transversalmente barreiras incomunicáveis. Se as antinomias são a condição necessária de qualquer síntese, a compreensão de tão completa personalidade só pode lograr-se mediante o estudo crítico da sucessão das suas ideias e dos contrastes da sua vida interior.

Por isso, ainda, não preferiremos uma fase da evolução do seu espírito a outra, nem discriminaremos no conjunto das suas ideias o verdadeiro do falso, o real do ilusório, o consonante do dissonante, o consistente do espectral. Todas se deram na sua consciência com a mesma sinceridade e quase todas adquiriram no sortilégio do seu verbo, senão a mesma vibração estética, pelo menos o mesmo alento comunicativo; tanto basta para que não façamos de Antero uma existência falhada nem estrangulemos o seu ser profundo na forca de ideias limitadas, julgando-o como herói ou como réu em nome de qualquer das parcialidades que nos dividem.

O HOMEM NOVO

Força é pois ir buscar outro caminho!

Lançar o arco de outra nova ponte

Por onde a alma passe...

(Sonetos, A Ideia, III)

Os primeiros decénios do século passado assinalaram uma transformação da sociedade portuguesa, tão profunda e radical que só tem paradigma na convulsão que levou ao trono a dinastia de Aviz.

O primeiro rebate soltaram-no os campanários das nossas cidades e aldeias em 1808, o ano da viril resistência popular contra a primeira invasão francesa. O poder central e centralizador, absoluto no fundamento teórico e no exercício da autoridade, eclipsara-se; suprindo-o, primeiramente às ocultas, depois às claras, as necessidades prementes da defesa da Pátria, fundindo as classes sociais no crisol da libertação e da Independência, geraram a constituição de Juntas de governo local — Bragança, Porto, Figueira da Foz, Évora, Olhão, etc. —, e lançaram os povos na inédita experiência do exercício direto da Soberania. As trágicas realidades impuseram-se às tradições e práticas administrativas: empunhando as armas, obedecendo a uma disciplina mais ou menos votada, elegendo autoridades, os povos iniciavam, no fragor da luta patriótica e com ela confundida, uma aprendizagem política, que iria dar estilo ao século estruturando a orgânica do Estado.

A semente não ficou estéril. No breve decurso de doze anos, o que fora produto ocasional das circunstâncias transformava-se em programa político incitante e consistente, que, iluminado pelo exemplo das Cortes de Cádiz e pela gesta emancipadora de Simão Bolívar na América do Sul, estimulado pelo “pronunciamento” de Riego em 1820, mais ou menos esclarecido pela literatura dos enciclopedistas e pelos discursos da Convenção, excitado, sobretudo, pelo desaforo tutelar e vingativo do inglês Beresford e pela subordinação da metrópole à “colónia” do Brasil, deflagrou em revolução, isto é, na substituição violenta da ordem existente.

A tremenda empresa começou publicamente em 1820, entre esperanças e rancores, com sangue e lágrimas, mas onde se erguem com perfil severo e augusto as imagens esculturais da Lealdade, do Sacrifício, da Coragem, do Patriotismo. Desde então, tudo mudou, desde os ideais de vida à própria infraestrutura económica e social: politicamente, o absolutismo cedeu ao liberalismo, o direito divino dos reis à soberania do povo, o Estado deixou de prosseguir, essencialmente, fins transpessoais para se volver em instrumento de proteção dos direitos e interesses dos “cidadãos”; socialmente, as classes, até então privilegiadas, são submetidas ao império da Lei igual para todos; economicamente, a atividade limitada das corporações é substituída pela liberdade de comércio, e literariamente, o Classicismo, como ideal estético e norma de vida, desaparece perante o enlevo sentimental e imaginativo do Romantismo.

A imensa transformação operou-se à custa de sangrentas lutas civis e de horrorosas tragédias domésticas, com avanços e retrocessos vários, mas, grosso modo, pode dizer-se que por 1852, após a Regeneração, as duas famílias mal-avindas que há séculos tecem e destecem a nossa História, lutando uma pela continuidade no tempo, com espírito de herdeiro, e, portanto, pela Autoridade, e a outra pela convivência no território que nos pertence, com amor do risco e espírito de iniciativa, e, portanto, pela Liberdade, encontraram uma fórmula de suportarem as mútuas desavenças, quanto mais não fosse por cansaço passageiro, admitindo uma hierarquia de valores individuais e coletivos, propícia à paz pública e à fruição dos sentimentos burgueses, isto é, à doçura do viver doméstico, digno, honrado, liso, sem privações e com a segurança do dia de amanhã.

Bruscamente, por volta de 1870, irrompe um grupo de gente nova, — nova na idade e mais nova ainda nos sentimentos e nas ideias —, que não hesita em atacar este acordo e, renegando a maior parte dos valores vigentes, sem os quais, aliás, não teria sido possível a sua gestação espiritual nem a sua manifestação social, se proclama “exclusivamente da Revolução e para a Revolução”. Pela limpidez de consciência, pela inquietude metafísica, pela elevação intelectual, Antero foi o príncipe incontestado e incontestável deste grupo célebre pela diversidade de talentos, de várias gradações e cambiantes, desde a naturalidade escrupulosa, pesada e sábia, de um Adolfo Coelho à pedantice atrevida e alada do seu antípoda Oliveira Martins, cujo estilo mágico nem sempre logra dissimular a ignorante sobranceria de uma mentalidade catastrófica e presunçosa, convicta que das suas cogitações datará uma era nova.

Estudar Antero é, assim, debruçar-se, a um tempo, sobre uma consciência isenta, digna e sincera, sobre uma quadra da nossa consciência cultural, ao infletir-se para nova caminhada, sobre dúvidas e problemas que não conhecem data, porque brotam incessantemente do mais fundo da consciência aporética, e sobre a morfologia epocal e nacional do conflito de tendências e de ideias da segunda metade do século passado.

Sem exagero se pode dizer que a biografia de Antero começa em 1858, ao matricular-se na Faculdade de Direito, em Coimbra, porque é a partir de então que o embate das tendências hereditárias se torna consciente e a sua alma renasce pela ação sinérgica de três componentes: a psíquica, a ambiental e a epocal.

Num ensaio sobre as Meditações de Lamartine, publicado em 1860, aos dezoito anos, escreveu Antero que “não obstante... alguma exageração no sentimentalismo e no errar de imaginação, a que por vezes falta a solidez do pensamento, as Meditações serão sempre a admiração do indiferente, o enlevo do crente e um conforto para os que se debatem no ecúleo da dúvida».

Pela primeira vez se nos depara, na aurora da virilidade, a palavra terrível, a dúvida, cujo curso o conduzirá ao desespero, e cujo “ecúleo”, cravando-se profundamente na sua alma em formação, lhe lacerou a ingénua paz interior. A meninice, no seio de uma família da aristocracia insulana, temente a Deus e respeitadora das conveniências sociais, tem de saliente a religiosidade com que cresceu, a ponto de, segundo se diz, esboçar uma vocação sacerdotal, — o que, aliás, cativaria os sentimentos maternos e as tradições de uma progénie que contava nos avoengos doze servidores da Igreja, entre os quais o místico Frei Bartolomeu do Quental, introdutor da Congregação do Oratório no século XVII.


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