Evolução espiritual de Antero

Como boa parte dos homens da sua idade, Antero foi convictamente programático. Teve por sem dúvida que a injustiça social e a desorganização da vida pública procediam fundamentalmente de uma crise mental, pelo que, consequentemente, o restabelecimento da ordem devia iniciar-se no plano da inteligência para se firmar no da estrutura económica e rematar no da atividade político-social. Não tem outra origem o programatismo de Teófilo Braga, que encontrou no Positivismo as bases da reorganização mental e política da sociedade portuguesa, assim como o de Oliveira Martins, que não hesitou em traçar o programa da revolução socialista, de olhos postos num Estado essencialmente regulamentador e administrativo, e o do próprio Antero, que por 1871 começou “a trabalhar seriamente” no Programa para os Trabalhos da Geração Nova.

“Caso novo na literatura portuguesa”, o Programa dividia-se em três partes, sendo a primeira destinada às Ideias, “que é uma espécie de Filosofia da Revolução”, e a segunda e terceira, às Instituições e aos Sentimentos, constituindo as «aplicações dos princípios estabelecidos».

“Que bela coisa, meu caro, escrevia a Oliveira. Martins (7-7 (?)-1871), não seria, com efeito, ter dado o íntimo pensamento da Revolução em meia dúzia de ideias, claras, ligadas entre si e de que tudo naturalmente se deduzisse!”

Nesta “meia dúzia de ideias” era trave-mestra a conceção da imanência, ou mais propriamente, “a evolução histórica da Transcendência para a Imanência, [que] já vai sendo para mim uma espécie de ideia fixa; quase não posso ler nem pensar senão sobre este assunto”. O porquê desta evolução era “abstrato”, residindo, a seu ver, “na evolução físico-metafísica efectuada desde Platão até à Renascença”. O “ponto” consistia em saber se “o espírito antigo, representado no que tinha de mais alto, as suas escolas filosóficas, [podia] constituir uma filosofia positiva, isto é, dar uma solução positiva à metafísica e cosmogonia, estabelecendo, por conseguinte, o ponto de vista da Imanência.

“Se sim, então é certo que só causas externas à íntima evolução do pensamento antigo (Oriente, Bárbaros) puderam perturbar o curso normal desse desenvolvimento, e que o Cristianismo e Idade Média se devem considerar fortuitos.

“Se não, devemos concluir que, dum modo ou de outro, um Cristianismo, uma Ultra-transcendência, e por conseguinte, uma Idade Média eram necessários, eram fases lógicas da Evolução.

“Se uma filosofia positiva não era ainda possível, então a filosofia devia inclinar cada vez mais para o misticismo, e auxiliar assim o movimento da recrudescência religiosa das massas, temperando-o, espiritualizando-o, metafisicando-o, mas dando-lhe força e extensão pasmosas. Isto foi o que aconteceu: e eu sustento que devia acontecer, porque não vejo na ciência nem na metafísica antiga um único elemento sério de filosofia positiva”.

O problema subjacente a estas afirmações é um problema de “história ideal”, ou seja, o da “necessidade abstrata dum largo período de Transcendência, termo fatal na passagem do Naturalismo para a Imanência”.

Esta função explicativa procede, evidentemente, do conceito de imanência como atividade inerente ao ser ou ao acontecer, e que no próprio ser ou acontecer tem princípio e fim. Em si e na sua inserção na História, a imanência é a razão de ser da constituição da positividade na Ciência e na Filosofia, sem a qual já não podem ser pensadas as diversas manifestações da realidade, e designadamente a ocorrência da Morte.

A morte, porém, não é somente uma ocorrência natural, porque é, também, a juízo de Antero, a consequência de uma necessidade metafísica inerente aos seres limitados e individuais. É o que se propõem mostrar, na sua densa concisão, as páginas da “Filosofia da Morte” e da “Metafísica da Morte”.

O primeiro destes escritos considera inerente ao eu pessoal a consciência da limitação e da finitidade, em virtude da qual não é para si mesmo que o ser humano “deve viver, mas para algo de eterno”. Se o eu não fosse finito, seria imortal, e portanto absoluto, isto é, teria início e fim em si mesmo, e sem possibilidade de progredir, adorava-se a si próprio; mas como é finito e mortal, não se basta a si mesmo, é suscetível de progresso, ou por outras palavras tem “a capacidade e o desejo de sacrificar a satisfação do que é passageiro ao que o não é”. Consequentemente, a Morte, que é a objetivação da consciência da finitidade, “é a base da vida moral”.

A Metafísica da Morte transpõe a Morte do plano vivencial humano para o plano metafísico, atribuindo-lhe uma razão em virtude da qual “é necessária”.

É que “os seres são necessariamente relativos, limitados e imperfeitos, por isso que são seres reais, visto que a realidade exclui o absoluto e a perfeição: absoluto e perfeição não se podem conceber senão como tipo ideal e não como atualidade e realidade. Mas por outro lado, a tendência desses seres relativos é realizarem, nos limites das suas condições, aquele tipo ou ideal e como essas condições são limitadas, limitada é essa realização, donde resulta que, realizado esse fim nos limites possíveis, o ser estaciona, deixa, pois, de ser apto para continuar a realizar o seu fim e perde por conseguinte a sua razão de ser. A Morte não é mais do que a manifestação física desta necessidade metafísica”.

Propriamente, Antero não diz em que consiste o ser da Morte. Acentua somente que a Morte é metafisicamente necessária, por constituir transitivamente a integração do ser individual, e portanto limitado, no ser total. O indivíduo não é ser-em-si nem para-si; o seu destino cumpre-se no ser total pela cessação do que constitui precisamente a nota singular da individualidade, sendo a compreensão deste sentido e desta necessidade metafísica que dá significado conceptual ao terceto final do soneto Eutanásia:

Dormirei no teu seio inalterável,

Na comunhão da paz universal,

Morte libertadora e inviolável!

A “grave questão do bem-morrer”, à luz da filosofia da Revolução, ou mais propriamente do ideário de Proudhon, não comportava os problemas que a religião e as filosofias da transcendência suscitam, nem tão-pouco o dramatismo da soledade da consciência, da angústia da vivência do limite e da inquietude do porvir.

Desta rápida análise se depreende que, inicialmente, a experiência da morte que Antero viveu nos princípios de 1874 o não conduziu ao desespero moral nem ao pessimismo na conceção da Vida; viu no acontecer da Morte uma relação que unifica intrinsecamente o seu acontecimento com a totalidade da Vida, sendo esta integração na imanência do ser que lhe confere a característica própria. Metafisicamente, o ser individual e o ser total coincidem, mas esta coincidência vai dissociá-la por virtude de novas incitações e reflexões. Dois anos depois, a situação espiritual de Antero começa a ser outra: no horizonte metafísico surgem-lhe a transcendência como categoria explicativa da realidade e o pessimismo como estimativa da existência que se vive.


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