Evolução espiritual de Antero

“No meu estado de doença, quase entrevado, pois já é raro que possa sair de casa, que seria de mim se não fosse a leitura?”, escrevia em 1875 a João Machado de Faria e Maia.

Os livros tornam-se seus companheiros constantes e inseparáveis. A doença exortava-o à evasão pela leitura, mas a par da assimilação, reflexão e projeção do pensamento alheio no seu próprio pensamento, ela suscitou também, progressivamente, a perda do domínio da vida afetiva, “uma inquietação e quase angústia de imaginação” e “a tendência para o desequilíbrio” como expressivamente confidenciou a Oliveira Martins em Dezembro de 1876.

A sua consciência de enfermo adquire então novas dimensões e ressonâncias, à medida que a mente do Poeta assimila e se nutre de leituras e de reflexões que têm por centro a conceção pessimista da existência. Atentemos nos marcos capitais desta jornada.

Como Antero confessou em carta (28-111-1885) a Francisco Machado de Faria e Maia, o pensamento nunca se lhe entorpeceu, mas na ordem ativa, e principalmente volitiva, sentia como que uma barreira intransponível entre a intenção e a deliberação, isto é, a abulia. Dir-se-ia que a sua personalidade se cindira em dois seres: o homem que tinha sido e se esforçava por continuar a ser, e o homem que era atualmente. Os dois homens coabitavam na sua consciência, mas não se reconheciam mutuamente, e até se opunham em amargurado diálogo.

Os sonetos do quarto ciclo — 1874-1880 —, que Antero considerava como o que “há de sério” na coletânea dos Sonetos Completos, são em boa parte o diálogo destes dois homens, dos seus conflitos de toda a hora e das suas tentativas de impossível conciliação.

O poeta participante e partidário das Odes Modernas, que pusera a Poesia ou, mais propriamente, a Arte, ao serviço da Revolução, cede o lugar ao poeta que impregna de subjetividade, e até de intimidade, o discorrer filosófico sobre o valor da Vida. Em vez da confiança prospetiva do “homem novo”, é a dúvida e o desespero que agora lhe incitam e nutrem a inspiração, e tanto mais acerbamente quanto sentia, mediante a vivida experiência direta, o contraste da alegria que brota das convicções plenamente sentidas e do desengano descoroçoante que vertem

As lágrimas geladas da descrença.

(Espectros)

A nevropatia, a descrença, exacerbada pela posição problemática em face da Vida, e o sentimento da desvalia da existência, como que se associaram solidariamente na gestação de uma filosofia pessimista, que algumas leituras instruíram e lhe sugeriram o esboço de uma conceção fundada e de ambição sistemática. Antes, porém, de a considerarmos na sua expressão e nas suas fontes, vejamos descarnadamente as formas mais simples do pessimismo anteriano e dos esforços para o superar, expressos nalguns sonetos do último ciclo (1880-1884).

Em contraste da alacridade anterior que lhe inspirara tantos versos, designadamente os do soneto Mais luz,

Eu amarei a santa madrugada,

E o meio-dia, em vida refervendo,

E a tarde rumorosa e repousada.

Viva e trabalhe ena plena luz; depois,

Seja-me dado ainda ver, morrendo,

O claro sol, amigo dos heróis!

todo o acontecer lhe aparecia agora como produto da ação maquiavélica de uma Natureza intrinsecamente má. A nova maneira de ver, horrível na memória de quem havia concebido a Vida instrumentalmente e com imperativos de mais-além morais, insinuou-lhe a ideia da irracionalidade do Universo, sob a forma do “humorismo transcendente”, na feliz expressão de Oliveira Martins:

Erma, cheia de tédio e de quebranto,

Rompendo os diques ao represo pranto,

Virou-se para Deus minha alma triste!

Amortalhei na fé o pensamento,

E achei a paz na inércia e esquecimento...

 Só me falta saber se Deus existe!

(O convertido)

A vida perde todo o valor, e o fluir do tempo não é mais do que a geração ininterrupta de

Dor, pecado, ilusão, lutas horríveis

Num turbilhão cruel e delirante.

(Divina Comédia)

O Sol já não ilumina as suas apóstrofes e visões proféticas, porque a luz é o “Símbolo... da universal traição”. A claridade ofende-o, e é na escuridão e com espírito de total renúncia que tateia a imagem fria e viscosa da vida:

Noite, vão para ti meus pensamentos,

Quando olho e vejo, à luz cruel do dia,

Tanto estéril lutar, tanta agonia,

E inúteis tantos ásperos tormentos...

Oh! antes tu também adormecesses,

Por uma vez, eterna, inalterável,

 Caindo sobre o mundo, te esquecesses,

E ele, o mundo, sem mais lutar nem ver,

 Dormisse no teu seio inviolável,

Noite sem termo, noite do Não-Ser

(Nox)

Concebe o homem como

Um parto da Terra monstruoso

(Homo)

e o “eterno vazio”, o termo da consciência,

Como o último suspiro do Universo

(Espiritualismo, II)

perante o qual toda a ideia de renascença ou de palingenesia era simultaneamente intolerável e impossível,

Porque a noite é a imagem do Não-Ser,

Imagem do repouso inalterável

E do esquecimento inviolável,

Que anseia o mundo, farto de sofrer...

(Hino da Manhã)

Esta noite do Não-ser, este repouso universal, aniquilando o eu, significava uma forma de libertação, mas a sua alma, sempre insatisfeita, debateu-se em novas aventuras metafisicamente libertadoras, ora vendo no sonho a evasão suprema, como no soneto A Virgem Santíssima,

Ó visão, visão triste e piedosa!

Fita-me assim calada, assim chorosa

E deixa-me sonhar a vida inteira...

ora encontrando na morte, ao ritmo do próprio aniquilamento do Universo, a conquista definitiva, a paz eterna, como no soneto Em viagem:

Quem sois vós, peregrinos singulares?

Dor, Tédio, Desenganos e Pesares...

Atrás deles a Morte espreita ainda...

Conheço-vos. Meus guias derradeiros Sereis vós.

Silenciosos companheiros,

Bem-vindos, pois, e tu, Morte, bem-vinda!

Antero viveu com íntegra sinceridade, pela emoção e pela razão, esta conceção desvaliosa e aniquilante, mas, em rigor, os seus versos não têm a vibração da intimidade autobiográfica. Não transmitem o desengano das esperanças de um sonho da juventude, a desilusão das ambições e das alegrias, o travo da melancolia das horas sempre iguais; dão-nos, acima de tudo, uma conceção extroversa da realidade.

Alude ao “tédio extremo de um viver magoado” (Elogio da Morte, IV) e recorda as insónias torturantes, cruzadas de espectros que lhe enchem “as noites de agonia e susto” (Espectros), mas pouco mais se encontra de confidência íntima. É que para Antero não era apenas o seu corpo e o seu espírito que sofriam, nem a dor lhe aparecia como privilégio de uma roda seleta de incompreendidos, que desdenhosamente lançassem sobre o Mundo o desprezo do seu orgulho ou da superioridade das suas ideias. Antero, talvez em menor grau do que Oliveira Martins, teve o sentimento de que o rodeavam a insignificância e a nulidade; não obstante, na sua consciência e na sua mente de individualidade pensante, o pessimismo não foi o protesto de um desolado, incompreendido e vingativo, mas a expressão da dor impessoal e objetiva que aflige a consciência humana e se dá — ou parece dar — como coessencial à própria existência.


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