Evolução espiritual de Antero

 

O FILOSOFO

Desta inquirição, longa para a brevidade de um ensaio e curta para a magnitude do assunto, colhe-se a conclusão de que o pessimismo de Antero foi transitivo. Conhece datas: nasceu por 1874, desenvolveu-se nos anos imediatos, de tal modo que em 1886, como escrevia a Jaime de Magalhães Lima, o situava sem constrangimento numa região espiritual já percorrida - “o pessimismo não é um ponto de chegada, mas um caminho. É preciso passar por ele, mas justamente para sair dele” —, e quatro anos mais tarde, nas Tendências já não hesitava em o qualificar, depreciativamente, de “mórbido”.

Compreende-se. A reflexão que se move dentro da desvaloração pessimista tem necessariamente de se defrontar com o problema da libertação do mal-de-existir. É, a um tempo, exigência lógica e imposição do sentimento vital. Por isso, Antero, como Schopenhauer e Eduard von Hartmann, pôs a si mesmo o terrível problema, mas repudiando a solução resoluta daquele e a hesitante deste, terminou, afinal, por superar os postulados subjacentes ao pessimismo. Daí, o ter dito que o pessimismo era um “caminho”, e não um “ponto de chegada” —, e outro, com efeito, não podia ser o juízo decisivo e final de Antero.

Além do paradoxo da aniquilação da Vida ser apresentada como desfecho da reflexão filosófica e do saber científico, o pessimismo era intrinsecamente aberrante com os ideais do homem-novo, que lhe nutriram a formação coimbrã e modelaram a própria personalidade. No íntimo, o pessimismo anteriano foi, em boa parte, a expressão de uma crise de idealismo. Ser idealista (excluindo da palavra todo o sentido gnosiológico), equivale a declarar que se prefere o ideal configurado ao real objetivado, de sorte que a atitude idealista contém em si mesma vicissitudes e a possibilidade de novas adequações e perfectibilidades, mormente, como no caso de Antero, quando se faz da evolução e do progresso a lei fundamental. Antero corrigiu e quebrantou o seu ideal perfectibilista, mas, no íntimo, não o abandonou nem trocou. por qualquer outro. Daí, o pessimismo ter de ser, para o seu pensamento, a uníssono dos anelos da sua consciência, um “caminho” na jornada da reflexão, e não um “ponto de chegada”.

A marcha ascendente no sentido de uma nova conceção da vida e da existência tem duas expressões capitais: os sonetos do último ciclo — o quinto, constituído pelos sonetos escritos entre 1880 e 1884, os quais significam o testamento poético de Antero, e o ensaio sobre as Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX (1890), que condensa o seu testamento filosófico.

O novo curso de ideias nutriu-se fundamentalmente de anseios e de reflexões pessoais, mas, como é óbvio, não dispensa a conexão com a situação cultural, já na expressão que ela teve entre nós nos dois decénios finais do século passado, já na atração que a Alemanha exerceu no espírito de Antero e o levou a procurar em filósofos de além-Reno, desde rapaz, a resposta mais convincente às suas dúvidas inquietações propriamente filosóficas.

Culturalmente, em relação à situação portuguesa, a nova reflexão de Antero orientou-se no sentido metafísico e com ambição sistemática, DM total contraste com a orientação dominante.

Por volta de 1880, com efeito, o Positivismo dominava soberana-nente em Portugal. Teófilo Braga, em Lisboa, Correia Barata e Emídio Garcia, em Coimbra, Júlio de Matos, no Porto, foram os principais arautos e expositores das conceções comtianas, que eles consideraram a filosofia final e definitiva e Teixeira 13astos, nas Vibrações lo Século, se esfalfava em ornar com a sedução da poesia.

Com razão e até orgulho, Teófilo, o torrencial e maciço, pôde escrever na mensagem dos positivistas portugueses, lida na inauguração da estátua de Auguste Comte, em Paris, em 18 de Maio de 1902: “Existe uma nova atmosfera mental: Auguste Comte, coordenando todas as conceções definitivas apresentadas por Aristóteles, Bacon, Descartes, Hume, Condorcet, Adam Smith e Bichat, fundou a Filosofia positiva, partindo da hierarquia teórica para terminar na subordinação dos fenómenos sociais à observação científica”.

Viessem de Comte, de Littré, de Spencer, de Stuart Mill, de Ardigó, ou até da fadiga que as páginas metafísicas geram em quem não ouviu uma vez na vida o apelo da abstração ou não praticou a ascese da sondagem problemática, os pregões da positividade, do cientismo e da inutilidade da especulação metafísica tornaram-se por então tópicos triviais, aliás, compreensíveis e até necessários quando se atenta na necessidade pública de dar sepultura a estafados lugares-comuns e a tropos e embrechados de filosofia de palavras. As mentes de formação científica, o Positivismo proporcionava uma atitude coerente, e às almas amantes da Justiça, a sociologia comtiana atraía pela subordinação do progresso moral e da força arbitrária ao império do Direito, justificando, consequentemente, as liberdades e aspirações da consciência moral e cívica, pela conexão que ela estabelecia entre a orgânica do Estado e as aspirações éticas. Por estas raízes, o positivismo comtiano entroncou-se entre nós com as aspirações do Vintismo, tornando-se, politicamente, como que o traço de ligação do primeiro liberalismo português, tão nacional nas origens e na índole e tão frouxo doutrinariamente, com a teorização do ideal republicano, que veio a prevalecer em 1910.

Os positivistas portugueses, como o patriarca Comte, sentiam horror pela metafísica e, talvez mais cerradamente que o Mestre, entendiam por positividade a representação do Mundo como coisa simples e sólida. Confinavam a inquirição ao conhecimento dos factos e respetivas relações mais próximas, mas com serem estreitos e apertados, os confins atribuídos ao pensamento consistente foram úteis e até necessários. Sem eles, não disfrutaríamos a possibilidade da efetiva e eficaz melhoria das condições de vida, que muitos séculos de estancamento mostram não terem resultado, nem poderem resultar, da estrutura, da problemática e da metódica da metafísica tradicional.

Não foi dentro dos princípios do aristotelismo e das filosofias suas derivadas que surgiram os progressos científicos e técnicos da, modernidade, alguns dos quais, como os que dão retumbância e levam longe e célere a voz dos seus detratores, são a ironia vingativa do Positivismo, no sentido largo do termo. Ouvir a radiotelefonia e viajar de avião são acontecimentos que se explicam a partir de certos repúdios e de certa conversão da mente; por isso, sob este ponto de vista, o Positivismo marca um passo decisivo e benéfico no sentido da cientificação da existência, mas nem tudo o que o “sistema” positivista predicava satisfazia as exigências racionais e os anelos das consciências.

Aqui e além, entre nós, surgia um ou outro reparo dos que sentiam a irredutibilidade do espírito à matéria e do pensamento ao movimento, mas estes mesmos como que abdicavam perante a evidência da noção comtiana de positividade, da unidade morfológica da Ciência e da estrutura unitária do método científico. A todos se impusera como tópico evidente o pressuposto de que tudo o que ocorre, sem exceção, no mundo físico, como no mundo social e moral, está submetido à mesma legalidade mecânico-causal. Reconhecia-se como paradigma o método das ciências exatas e partia-se do princípio de que todos os fenómenos, fosse qual fosse a região ontológica em que se produzissem, podem ser racionalmente conhecidos e explicados mediante fórmulas de expressão matemática, senão atualmente, pelo menos no futuro, com o progresso à adequação dos métodos, de raiz unitária na só aparente diversidade.


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