Evolução espiritual de Antero

Estes pressupostos firmam ainda hoje a orientação de alguns sectores das nossas atuais correntes filosóficas, e creio que jamais deixarão de ter adeptos e defensores. É. que a sua força, mais espontânea que refletida, brota da racionalização da realidade como aspiração suprema do pensamento, a qual constantemente rejuvenesce com os resultados tangíveis alcançados pelas ciências físico-matemáticas e pela conceção mecanicista da Natureza.

O viço com que incessantemente remoça é, pois, natural, mas como já dissera Antero em fugaz referência e as atuais sondagens ontológicas puseram a claro, só é próprio da região peculiar dos objetos e das relações físicas. Fora dela, estanca e volve-se em soporífero. É que o mundo da teoria física não é o único mundo que o homem vive no pensamento e pela ação. A realidade não se oferece apenas sob a forma de objeto real, ou antes da exterioridade. Dá-se também sob a forma de subjetividade e de interioridade -- e o Positivismo, ou repelia esta maneira de ser-real, privando-a de autonomia científica, como à Psicologia, cujo objeto repartia pela Biologia e pela Sociologia, ou submetia-a às conceções e métodos da ciência natural, considerando como coisa o que se apresenta com a sigla peculiaríssima do vivido e do sentido. A metodologia e a problemática de Teófilo Braga, assim como a sua explicação do fenómeno histórico-literário como resultado de elementos estáticos e dinâmicos, exemplificam claramente a atitude positivista.

São patentes a estreiteza e as limitações desta atitude; reduzindo o conjunto da realidade à Física e a física à Mecânica, somente adquirem acesso à consideração legítima as manifestações captáveis sob a forma de objeto ou de relação mensurável, e a Filosofia como que se limita ao contrassenso de se pensar a si mesma como inexistente.

Antero, nas páginas das Tendência Gerais da Filosofia na Segunda Metado do Século XIX foi a voz que no findar do século mais alto fez erguer o protesto discordante. Ninguém, porém, prestara ouvidos atentos às suas razões de hegeliano retardatário —, o que aliás não afeta que hoje lhos prestemos, volvido meio século, já pelo que disse, já pelo que o seu dizer significa.

O veemente sentido ético, constante na estruturação da sua personalidade, levou-o a apreender, aguda e persuasivamente, que o “Naturalismo (em cujo conceito se deve compreender de Positivismo)... deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele tem de mais profundo, por satisfazer”, como confessa na Carta autobiográfica. E acrescenta:

“O Naturalismo, na sua forma empírica e científica, é o struggle for lite, o horror de uma luta universal no meio da cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialética gelada e inerte, ou um epicurismo egoisticamente contemplativo. Eram estas as consequências que eu via sair da doutrina com que me criara, da minha alma mater, agora que a interrogava com a seriedade e energia de quem, antes de morrer, quer ao menos saber para que veio ao mundo.

“A reação das forças morais e um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que percebia que a voz da consciência moral não pode ser a única voz sem significado no meio das vozes inúmeras do Universo, refundindo a minha educação filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer na história, a confirmação deste ponto de vista.

 “... Achei que o misticismo, sendo a última palavra do desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência humana uma extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas.

“O Naturalismo apareceu-me, não já como a explicação última das coisas, mas apenas como o sistema exterior, a lei das aparências e a fenomenologia do Ser. No Psiquismo, isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação última e verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a Natureza, ainda nos seus momentos físicos elementares. A monadologia de Leibniz, convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do Mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espírito é que é o tipo da realidade: a Natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo, um símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O Universo tem, pois, como lei suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo inflexível da Natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um cárcere: ele é, pelo contrário, o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só por ele é que o Universo sabe que existe: só ele realiza o fim do Universo”.

Antero deu nestes períodos a suma do seu breviário de filósofo e indicou os passos capitais da sua derradeira jornada espiritual. Sigamo-los, pois, atentos ao que eles repelem e afirmam, acompanhando-os principalmente no anseio da consciência que quer libertar-se e não somente na tensão e no teor da razão que examina e decide.

Vila do Conde foi o local onde mais intensa e absorventemente Antero cogitou o derradeiro ideário, que o “salvou do desespero”. Sem distrações nem solicitações, que trazem quase sempre a dispersão da atenção por ninharias, o isolamento, afastando-o do ritmo da vida do seu, e mais intensamente ainda, do do nosso tempo, obrigou-o a encontrar-se consigo mesmo a toda a hora e a escolher o convívio das leituras mais condizentes com os seus anelos e apetências. A intimidade consigo mesmo decantou e sublimou-lhe a irresistível tendência para a vida inte-rior, aprendendo nos intermináveis solilóquios, dentre outras coisas, que o Universo é função da mentalidade que o contempla, o que equivale a dizer que o Mundo lhe surgia, no domínio da possibilidade, como diverso, isto é, um pluriverso, se a expressão é legítima.

Era o começo de uma nova sabedoria, porque o obrigava a tomar posição e a decidir com o suor da razão, que é a exigência mais árdua e temerosa de quem filosofa, e esta sabedoria começou, naturalmente por se opor e repelir: esteticamente, o Mundo pareceu-lhe feio; socialmente, injusto; cientificamente, limitado, e metafisicamente, carecente de uma sistematização que superasse o naturalismo dos positivistas, os quais limitando o conhecimento aos factos, isto é, à mudança e à alteração, e esquecendo o que muda e se altera, como que convertiam o Universo num não-senso existente.

Desligando-se da positividade reinante, lança-se então no estudo da Filosofia, e em especial medita, além de Hegel, o guia principal da reflexão de toda a sua vida, Leibniz e Kant, informa-se e colhe ensinamentos na Contingência das Leis da Natureza, de Émile Boutroux, na História da Filosofia Moderna, de Windelband, na notável História do Materialismo, de Albert Lange, e, principalmente, na tese de Désiré Nolen, La Critique de Kant et la métaphysique de Leibniz. Histoire et théorique de leurs rapports (Paris, 1875), que está para a formação do derradeiro ideário das Tendências Gerais da Filosofia como o livro de C. Rémusat, De la philosophie allemande. Rapport à l'Académie des Sciences Morales et Politiques précédé d'une Introduction sur les doctrines de Kant, de Fichte, de Schelling et de Hegel (Paris, 1845) esteve para a formação do ideário da juventude. Do complexo da experiência vivida, das leituras meditadas e da própria intensificação da capacidade reflexiva, o espírito de Antero, ansioso de certezas e da posse de um sentido da Vida, debate consigo mesmo a demanda de uma solução metafísica, que desse a um tempo uma explicação do Mundo e uma resposta às aspirações profundas da consciência.


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