Evolução espiritual de Antero

“Teria os meus 10 anos, escreveu na advertência ' do Tesouro Poético da Infância (1883), quando pela primeira vez... ouvi recitar a um bom padre, que me ensinava rudimentos de gramática latina”, a “bela Ode sagrada” de Herculano, Deus. “Não ouso dizer que tivesse entendido. E, entretanto, profunda foi a impressão que recebi, como a revelação de um mundo novo e superior, a revelação do ideal religioso. Escapava-me o sentido de muitos conceitos, a significação de muitas palavras: mas, pelo tom geral de sublimidade, pela tensão constante de um sentimento grande e simples, aqueles versos revolviam-me, traziam-me as lágrimas aos olhos, como se me introduzissem, embalado numa onda de poderosa harmonia, na região das cousas transcendentes. Daí por diante, interrompia muitas vezes a repetição dos casos gramaticais, para pedir ao meu paciente mentor uma nova recitação daqueles versos. A minha nascente intuição do ideal religioso achava uma expressão reveladora na poesia grave e penetrante daquele hino sacro. Por muito que depois aprendesse sobre as cousas transcendentes, aquela impressão ficou — e considero-a boa”.

Qualquer que seja a interpretação teológica desta evocação, cuja essência talvez seja mais própria de um filósofo deísta que de um crente ortodoxo, é fora de dúvida que a meninice de Antero não ignorou Deus e se desenvolveu num ambiente de religiosidade.

Outra tradição, porém, mais recente, singularizava a família Quental: a da coragem cívica, associada aos ideais de liberdade política e, porventura, às audácias do “espírito forte”. Seu avô, André da Ponte do Quental da Câmara, foi encarcerado em 1797 por “ter ideias francesas” e possuir “papéis ímpios e sediciosos”, viveu com Bocage a boémia literária e estúrdia da Lisboa dos derradeiros anos do séc. XVIII, foi “pedreiro-livre”, conspirou no patriótico Conselho Conservador de Lisboa, em 1808, contra Junot, é denunciado neste ano à Inquisição por herege, e, vintista da primeira hora, assina como deputado ao “Soberano Congresso” a Constituição de 1822; seu primo Frei André da Ponte de Quental viveu em Bruges horas amarguradas da emigração liberal, participando com o voto e com a pena na famosa questão do juramento da Regência (1830), um dos elos da cadeia de factos e de sentimentos que haviam de se cristalizar no Setembrismo e de deflagrar violentamente na Patuleia; e seu pai, Fernando de Quental, para tudo dizer, foi um dos “sete mil e quinhentos bravos do Mindelo”.

Até à vinda para Coimbra, em 1855, aos treze anos, como aluno liceal, a educação religiosa, hora a hora afervorada pela solicitude materna, dominou e reprimiu qualquer outra tendência, possível na plasticidade de um espírito juvenil, “de vivacidade exuberante, um tanto• travesso e, muitas vezes, principal protagonista nas diabruras”, segundo as recordações de José Bensaúde; na Universidade, porém, a meio do curso, o estímulo das leituras, o arrebatamento de uma mocidade impetuosa e afirmativa, que começara a descobrir o próprio eu e a afirmar-se com individualidade no seio de uma comunidade cultural, a atmosfera moral do ambiente, despertaram o conflito, que o contraste dos complexos ancestrais continha potencialmente, entre o menino que fora e o homem que alvorecia, inclinando-lhe a formação para a tradição familiar de convívio intelectual, que mais tarde recordaria (1890) em carta a João Machado de Faria e Maia: “Sabes? Tenho-me surpreendido, em vista da estranha variedade das tuas aptidões, de homem do mundo e de ação, de poeta e prosador, ora grave ora humorista, a lembrar-me os versos que Camões dedicava, há mais de trezentos anos, ao teu parente Estácio de Faria:

Agora toma a espada, agora a pena,

Estácio nosso, em ambas celebrado.

“Continuamos a tradição, nos nossos dias, como nossos avós a continuaram, entre si e com Bocage”.

Quando Antero se matriculou em Coimbra, na Faculdade de Direito, em 1858, aos dezasseis anos, era um efebo na plenitude do vigor físico, e aos dezoito anos, “um belo mancebo, alto, delgado, airoso e de porte nobre. Os cabelos bastos e louros, o nariz um pouco aquilino, o rosto oval, as faces de uma leve cor de rosa, recebiam grande animação e realce de uns olhos azuis e animados”.

Ao transpor a Porta Férrea, nos primeiros tempos da nova escolaridade, somente o seu tipo nórdico o singularizaria, e no fim do ano,

Os estudantes de Coimbra quase sempre se repartiram, e por vezes digladiaram, em parcialidades de índole diversa, alcunhando-se mutuamente com mais ou menos chiste, mormente nas épocas em que a educação se orientou para a independência intelectual e para a autonomia moral e as forças unitivas e o espírito de associação brotavam livremente, sem coação ou diretivas oficiais. No tempo de Antero as parcialidades dominantes designavam-se de traça e sopa: “a primeira é sociedade organizada na noite, tem ritos maçónicos, juramentos terríveis, fim proveitoso nenhum; a segunda não tem organização alguma, ritos nenhuns, juramentos ainda menos, fim, a união da Academia. Para o conseguir trabalha à luz do dia, porque entende que as trevas, negação da /uz, quando muito podem afirmar a existência desta”.

Depois de pagar com a prisão o fervor restauracionista das mais violentas e atrevidas praxes escolares, Antero não esmoreceu, acamaradando com os da traça, cuja índole implicava sentimentos e ideias mais ou menos hostis às tradições consagradas, designadamente, ser republicano, arder de indignação, com Victor Hugo, contra Napoleon-le-Petit, vibrar com os panfletos de Eugénio Pelletan  e oficiar no altar votivo dos numes da descrença e da justiça social.

A alcunha, por demais, sugere que a traça não poderia manifestar-se inteiramente às claras sem avivar o sobrecenho da autoridade universitária, cuja austera severidade foi quiçá um dos caminhos por onde alguns rapazes aprenderam a ser Homens, dado que a liberdade só se descobre — quando se descobre — pela via das limitações e se afiança pela do dever. E com efeito, assim foi, porque se ninguém contrariou as manifestações literárias e intelectuais da ala avançada da Academia, o mesmo se não poderia dizer dos intuitos de revindicta contra o Reitor Basílio Alberto de Sousa Pinto, — velho liberal, da primeira hora, que no Soberano Congresso, em 1821, defendera e votara a lei de liberdade de Imprensa, nas Cortes, em 1852, discursara contra a política autoritária de Costa Cabral e confessara ideais pedagógicos rasgados: — “Não acredito, disse, em nenhuma regeneração política que não seja acompanhada de uma regeneração moral: esta não a podemos hoje esperar de varatojanos, nem de brancanes, que não existem, mas de mestres e mestras de instrução, não dos atuais, mas de outros mais habilitados e mais bem pagos”; e, na Sala dos Capelos, na distribuição de prémios aos estudantes, em 22 de Dezembro de 1861, como que se justificava do rigor da sentença de 1859, porque, embora reconhecesse a necessidade dos prémios e dos castigos, não hesitava em declarar que “os castigos são uma condição terrível: martirizam, humilham e degradam a quem os sofre; consternam e compungem a quem os dá; afligem e contristam a quem os vê”.

Antero e os seus companheiros, porém, não perdoaram ao Reitor a severidade no cumprimento da Lei e, porventura, do Dever, e secretamente, na Sociedade do Raio, o casulo oculto e orientador da traça, planearam e levaram a cabo na Sala dos Capelos, no dia 8 de Dezembro de 1862, uma manifestação contra o “bom tirano”, como Eça o apelidou mais tarde, virando-lhe as costas e evacuando a Sala, no momento em que começava a ler a sua alocução.


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