Evolução espiritual de Antero

A juízo de Antero, o filosofar não tem termo, mas a Filosofia nunca pode ser definitiva. “Uma filosofia definitiva, feita e assente uma vez para todo o sempre, implicaria a imobilidade do pensamento humano: o absoluto anestesiá-lo-ia. Essa tal verdade, aspiração ingénua de espí-ritos incultos, pode animar os crentes e exaltar os entusiastas: nos domínios do puro pensamento nunca produzirá senão vertigem e ilusão”.

Por intrínseca determinação, a Filosofia é essencialmente temporal, isto é, exprime-se pela “equação do pensamento e da realidade, numa dada fase do desenvolvimento daquele e num dado período do conhecimento desta: o equilíbrio momentâneo entre a reflexão e a experiência: a adaptação possível em cada momento histórico (da História da Ciência e do Pensamento) dos factos conhecidos às ideias diretoras da razão, e a definição correlativa dessas ideias, não por esses factos, mas em vista deles”.

A reflexão filosófica tem, assim, de ser coerente com o estado dos conhecimentos científicos e, consequentemente, de se constituir como síntese coordenadora dos resultados da investigação científica, da crítica e da erudição.

“A Ciência é irmã da Filosofia, não sua serva. O terreno da especulação está limitado aos primeiros princípios das coisas e à análise das ideias fundamentais: o grande e variado mundo dos factos pertence inteiro à observação, à experiência e à indução”.

Nesta ordem de ideias, o intento mais condizente com a situação histórico-cultural seria a elaboração de uma teoria geral do Universo, como expressão completa do espírito da nossa época. Tal teoria, porém, parece irrealizável; por isso, em vez do caminho da síntese unificadora, o filósofo tem de seguir o do sincretismo.

“A hora do joeiramento das verdades adquiridas, da crítica e coordenação dos diversos pontos de vista e da conciliação dos sistemas parece ter soado para a filosofia moderna”. Mais ou menos explicitamente, a filosofia viva, isto é, atual, atualizada e atualizante, sempre teve este escopo, mas a síntese filosófica moderna, a juízo de Antero, não pode aspirar ao dogmatismo das filosofias do século XVII, que foi a era das grandes construções unitárias e sistemáticas: é essencialmente tendencial, “porque a verdade é para a nossa inteligência forçosamente cambiante”. Não se apresenta como “símbolo uniforme e completo do pensamento” nem como filosofia do Absoluto, mas a despeito do relativismo, isto é, da temporalidade histórica, que “não implica erro, mas só limitação... participa da natureza do absoluto e tem em si, como diz o poeta, parte alguma de infinito”.

Potência infinita, ato limitado, é a essência da Filosofia, mas isto não quer dizer que o filósofo se torne eclético ou tente, anacronicamente, uma nova sistematização unitária e dogmática, pois é sintoma frisante da situação cultural “o gradual enfraquecimento do espírito de sistema, do fanatismo dogmático «. Trata-se somente de superar as dificuldades e antagonismos existentes pela conciliação das noções fundamentais que “penetram... todas as criações espirituais dos povos modernos, afeiçoam os seus processos de pensar, inspiram as teorias gerais das suas ciências como determinam as tendências típicas da sua arte, da sua poesia, da sua política, modificam a sua religiosidade, infiltram-se no sentido geral, constituindo, por assim dizer, a atmosfera intelectual e psicológica do mundo moderno, ao qual dão a sua feição histórica particular e a sua unidade fundamental”.

Assim determinado o escopo da reflexão, o ponto de partida tinha de ser a determinação das “noções fundamentais”, que a um tempo caracterizam e distinguem o pensar moderno. Essas noções são as de força, de lei, de imanência ou espontaneidade, e de desenvolvimento: “quatro palavras... que representam, tanto em amplitude como em profundeza, a maior revolução intelectual da Humanidade”.

Estas “noções” pareciam-lhe o resultado definitivo da filosofia dos séculos XVII, XVIII e do primeiro terço do século XIX, e os seus juízos acerca da génese e expressão de cada uma delas têm densidade, mostrando que Antero se aplicou com empenho a leituras histórico-filosóficas e que destas extraíra, em boa parte, a ideia condutora das Tendências. A lição mais instrutiva dava-a o idealismo alemão pós-kantiano; por um lado, positivamente, ensinava que “a lei suprema das coisas confunde-se com a sua finalidade, e essa finalidade é espiritual”; e por outro, negativamente, que devia repelir-se o apriorismo, “a forma rigidamente sistemática” e a “pretensão exorbitante de construir o Universo dedutivamente e só com o poder da dialética”, o que “pareceu um verdadeiro atentado contra as ciências modernas”.

Na atividade filosófica da segunda metade do século passado avultavam dois factos consideráveis: o predomínio do espírito científico e do processo indutivo, o qual desacreditara a especulação apriorista e sistemática do idealismo alemão; e a renovação visceral” do espiritualismo, pela crítica kantiana, pela “fé filosófica de homens como Royer Collard, Maine de Biran, Jouffroy, Cousin, Ravaison, que não é para provocar desdéns” apesar de nunca ter chegado “a ser uma filosofia”, e pela constituição de uma psicologia “de tendências verdadeiramente científicas”.

Estes dois factos do maior alcance apresentam-se à reflexão como discordantes, em virtude de gerarem duas antíteses: de um lado, mecanismo e determinismo, e do outro, espiritualismo e liberdade. Daqui, a instância da superação destas antíteses, cuja problematização radicava, como é bem de ver, na conjuntura da situação histórico-cultural e no estado dos conhecimentos tidos por exatos.

Antero sentiu e compreendeu a profundidade deste problema, de tão fecundo e vário desenvolvimento, tratando-o não como amador de curiosidades intelectuais, mas com total sinceridade. que, para além de uma filosofia da Natureza e de uma posição na teoria do conhecimento, a solução importava a explicação da consciência humana e do seu significado e destino.

Apesar de hegeliano dissidente, Antero tratou este problema, cuja solução constituiria a um tempo a síntese do pensamento moderno e a explicação realista do ser, com o ritmo de um processo dialético — tese e antítese, a solicitarem a harmonia de uma síntese; e quanto ao fundo, teve em conta, decisivamente, as referidas “noções fundamentais” de força, de lei, de imanência e de desenvolvimento.

Estas noções, muito principalmente as de força e de imanência, “de que o Hegelianismo é a mais vasta e poderosa sistematização”, conduziram o pensador das Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX, guiando-o pela “influência omnipotente” que exerciam e ditando-lhe inclusivamente o âmbito da própria problematização. Estabelecer de início, como pressuposto, ou antes como dado, a imanência, equivale a excluir, dentre outros, os problemas da existência do Mundo e do Homem, a considerar a ideia de Deus no plano da historicidade e a admitir sem mais que a vida se situa totalmente na ordem natural, sem recurso a algo que a transcenda, e, para empregar as próprias palavras das Tendências, que “todo o ser tende para a afirmação de si mesmo, isto é, para a expansão e realização da sua essência”, e que “a sua potência ou virtualidade de expansão e realização é necessariamente ilimitada”.


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