Evolução espiritual de Antero

Assim posto, e condicionado, o problema filosófico fundamental, sigamos o pensamento de Antero.

No decurso da respetiva exposição, cuja ordenação é suscetível de outras formas, por problemas, designadamente, notaremos, separada e sucessivamente, sem desvios críticos e históricos, e recorrendo às próprias palavras das Tendências sempre que a clareza o aconselhe, os elementos da tese, da antítese, da síntese, da teoria da liberdade e da dos fins da vontade.

O século XIX foi o século da constituição das ciências da Vida e do desenvolvimento das ciências exatas, cujos progressos se obtiveram indutivamente, pela metodologia de observação e de experimentação. Pela correlação que a reflexão filosófica carece de estabelecer com os resultados científicos coetâneos, sempre que ela pretende real e decididamente, tornar-se consistente, e deixar de ser filosofia ao serviço de algo, os novos dados da Ciência suscitaram uma filosofia da Natureza, cujas feições pretendem reproduzir as da própria Ciência. Essas feições, ou características, bem diversas das da filosofia da Natureza dos metafísicos do idealismo alemão, exprimem-se por três conceções fundamentais: mecanismo, determinismo e evolucionismo.

Por mecanismo, entende Antero a explicação do complexo pelo simples, isto é, pelos elementos que pertencem exclusivamente ao domínio da mecânica. “Os factos últimos da Ciência são simples movimentos, forças elementares, nada mais”, porque “a Ciência é levada, pela mesma natureza das faculdades que a geram, a procurar os elementos irredutíveis dos fenómenos complexos, decompondo a aparência enganosa das coisas e resolvendo-a em factos últimos, os únicos que podem ser apreciados com rigor, até ao ponto de entrarem em fórmulas matemáticas, expressão completa da perfeição científica”.

Desta conceção mecanicista resulta o determinismo, porque “o mundo da mecânica é o mundo da necessidade”. A Ciência tem a sua âncora no império absoluto da causalidade, e no mundo que ela oferece tudo “se passa segundo leis simples e férreas”, sem haver lugar para a Providência, para o acaso e para a espontaneidade: “uma série de factos chama outra série de factos, e os fenómenos sucedem-se numa ordem invariável e fatal, ordem que por isso mesmo pode ser rigorosamente conhecida, descrita e prevista”. Consequentemente, “uma filosofia científica da Natureza tinha de ser determinista, pela mesma razão por que tinha de ser mecanista”.

Um terceiro carácter apresenta ainda esta filosofia científica: o evolucionismo.

O mundo fenomenal, “múltiplo nos seus aspetos, é ao mesmo tempo regular”, isto é, os fenómenos apresentam-se em séries, que se encadeiam e sucedem numa ordem regular, “saindo cada uma da anterior e apoiando-se nela. O mais simples precede o mais complexo, este é uma transformação daquele. A forma geral do Universo é, pois, a de uma evolução”.

Defrontam-se, porém, duas conceções diversas da evolução: a do idealismo alemão e a da filosofia científica da Natureza.

Segundo os metafísicos alemães, a evolução “caminhava do simples para o complexo, mas ajuntando, em cada momento da evolução, ao tipo inferior, para o fazer passar a superior, um elemento novo, um aumento de ser, que lhe provinha da virtualidade infinita da ideia (da substância) no seu processo de desenvolvimento. A evolução tinha, pois, segundo eles, um conteúdo verdadeiro, era essencialmente substancial”.

A filosofia científica da Natureza não comporta, nem admite, esta virtualidade da evolução, por não pressupor a existência da Ideia. O seu ponto de partida não é nenhuma substância metafisicamente concebida e previamente dotada de um poder de renovação incessante de si mesma nas suas manifestações, mas sim só aqueles factos últimos da Ciência, elementos mecânicos simples, nada contendo em si além da sua mesma natureza mecânica e por isso destituídos de toda a virtualidade. Ela tem, pois, fiel mais uma vez ao espírito da Ciência, de explicar o superior pelo inferior...”.

Esta visão cientificada do mundo é como que o espelho das próprias ciências, cuja seriação hierárquica, desde a Matemática à Sociologia, — Antero pensa na classificação de Comte -- representa abstratamente esta evolução.

A evolução, assim considerada, não satisfaz a crítica nem a consciência moral.

Como explicação do superior pelo inferior, do complexo pela acumulação do simples, “equivale no fundo a reduzir o superior ao inferior... e a admitir que o mesmo ajuntado ao mesmo produz o diverso”. A evolução torna-se meramente formal, — “um estado progressivo de complicação e nada mais”, e, além de formal, aparente, “porque o substancial e verdadeiramente existente são só aqueles elementos mecânicos de que tudo é feito, em que tudo se resolve e cuja complicação gera a fantasmagoria do mundo fenomenal. Arrastados nas espirais sem termo de um turbilhão incessante, esses elementos chocam-se, reagem, agregam-se e desagregam-se, encadeiam os seus movimentos, combinam-se mais e mais; mas considerados em si mesmos, conservam-se sempre simples, uniformes, inalteráveis e estranhos, por assim dizer, à diversidade e riqueza de aspetos que produzem, diversidade e riqueza que só são tais no espírito de quem as contempla, em si não existentes, puros fenómenos”.

O Positivismo, ou mais rigorosamente a conceção mecanicista da Natureza, ao considerar o Universo um “agregado uniforme regido por leis matemáticas, dissolve-o numa vasta mecânica de forças elementares” e tudo quanto dele pode aspirar a saber é “a intensidade, a direção e o encadeamento das forças que num dado momento atuam”. Nesta conceção, o Universo converte-se em um não-senso existente e a sua evolução “numa ilusão subjetiva”, porque torna impossível e inexplicável a verdadeira superioridade e o aumento do ser, o qual supõe, evidentemente, uma evolução que faz emergir novas formas, e criações, as quais surgem com caracteres diferenciados, senão irredutíveis ao condicionalismo anterior.

Embora a dialética da sua conceção da evolução radicada no idealismo alemão — leia-se o soneto Evolução — lhe impusesse este conceito, e Boutroux não seja nunca citado, é possível que nesta crítica do Universo naturalista haja também o eco da teoria da contingência das leis da Natureza. Esta crítica orienta-se no sentido do ser; mas orientando-se também no ponto de vista do sujeito, Antero, por esta nova face, encontra a confirmação do seu juízo, porque a esta conceção Falta “o que falta à inteligência científica”, que opera somente sobre dados primitivos e elementares. No fundo, nada explica. Deixa impenetrável “o mistério das ideias, que é o mistério do que na consciência está para além da sensibilidade, região obscura onde assentam essas explicações”, e o Universo que nos apresenta é um Universo abstrato, ao qual faltam a realidade concreta, viva, espontânea, e “as ideias superiores, as que alumiam, interpretando-as, as inferiores”.

Dá-nos, pois, uma explicação do Mundo, simples e grandiosa, extremamente precisa, “mas limitada à esfera inferior do ser, e por isso abstrata e inexpressiva”. Porém, a crítica irrefutável, pela posição em que se coloca, que Antero dirige a esta conceção do Mundo, não é epistemológica. É intrinsecamente ética, porque “a inerte serenidade que inspira a sua contemplação é muito semelhante ao desespero. A sua beleza puramente geométrica tem alguma coisa de sinistro. Nada nos diz ao coração, nada que responda às mais ardentes aspirações do nosso sentimento moral. Para quê, um tal Universo? e para quê viver nele? Nada alimenta tanto o mórbido pessimismo dos nossos dias como este gélido fatalismo soprado pela Ciência sobre o coração do homem”.


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