Evolução espiritual de Antero

A conclusão, portanto, a tirar desta explicação mecanicista, determinista e evolucionista da filosofia científica da Natureza é que ela contém uma verdade fundamental, mas restrita e incompleta na medida da estreiteza dos seus limites.

Paralelamente ao desenvolvimento das ciências da Natureza operava-se a transformação do espiritualismo dos Escoceses, pelo influxo do Kantismo e dos estudos de Psicologia. Na marcha histórica desta transformação, que não seguiremos para evitar desvios, Antero encontrava um resultado indiscutível e uma realidade insofismavelmente autêntica: a consciência.

A consciência é um “facto íntimo”, irredutível, e não uma entidade metafísica, uma substância, à maneira da conceção de Descartes, ou um princípio. A sua simplicidade, porém, é densa de consequências. Desde logo supera o ceticismo, pelo testemunho decisivo da própria consciência, e ao mesmo tempo, (e neste ponto parece sensível a influência de Lange na História do Materialismo), destrói o erro da conceção materialista, opondo-lhe “a impossibilidade racional de fazer sair da matéria... o facto de consciência mais elementar, a sensação. A acumulação de extensão não pode dar senão extensão: a acumulação de movimento não pode dar senão movimento. Do mesmo, não se pode extrair senão o mesmo, nunca o diverso. Ora na mais elementar sensação, há já implicada alguma coisa que não é a extensão nem o movimento, que não é, por conseguinte, matéria. Assim, pois, não só é impossível extrair da noção de matéria (extensão e movimento) a noção de espírito, mas o mesmo ponto de partida do materialismo, a sensação, que ele toma confiadamente na sua forma concreta, como se fosse um dado simples e irredutível, pressupõe e envolve um estado mais íntimo e profundo do ser, pressupõe uma realidade de ordem e compreensão superior, que é o espírito. Neste sentido, o materialismo pode dizer-se a confirmação e até o melhor argumento do espiritualismo”.

A consciência é, assim, qualitativamente uma realidade irredutível, e procurando-lhe essência, Antero encontra-a no espírito, que define como “energia simples, autónoma e espontânea”. O espírito nunca é puramente passivo, pois tem como características fundamentais a espontaneidade e a força consciente. Sofre sem dúvida a ação do mundo externo, mas as impressões exteriores modificam-no segundo as próprias leis do espírito: “uma sensação é uma modificação da sua substância, assim como uma ideia é uma modalidade dessa substância, assim como uma volição é uma determinação do mesmo ser”.

Esta espontaneidade revela-se claramente, segundo Antero, no conhecimento e na volição.

No conhecimento, a cuja estrutura atribui sentido idealista, de evidente filiação kantiana, “o espírito percebe o Universo, não adaptando-se a ele, mas adaptando-o a si”. Os factos são em si inertes e inexpressivos, e o que lhes dá ser e expressão é a inteligência, “em cujas categorias entram, fundidos pela elaboração mental, como em outros tantos moldes, ordenando-se nelas e por elas”.

O objeto do conhecimento é, pois, o objeto mental e não o objeto real, e portanto o Universo torna-se criação do espírito: “se existe para nós, é porque o concebemos; aparece-nos não refletido na inteligência, mas verdadeiramente visto nela”. “Todos os factos do Universo acumulados não produzem uma ideia”.

Espontâneo na ordem cognitiva, o espírito é-o também na volição. A essência da vontade é ser causa, quer dizer, a vontade “tem em si a raiz última das suas determinações. Consequentemente, não são os motivos que a determinam, porque se determina em vista de motivos, e esta determinação é radicalmente diversa do determinismo da ciência da Natureza, porque tem um fim, e esse fim reside nela própria. “Assim como na esfera das ideias, assim também nesta da vontade, o mundo objetivo não fornece ao espírito mais do que um ponto de partida e a ocasião do seu espontâneo desenvolvimento”.

Além de espontâneo, o espírito tem ainda o dom de ser uma força consciente.

Este predicado, cujas raízes se entranham principalmente na metafísica do idealismo alemão, completa a sua plenitude, convertendo-o na força-tipo, porque “conhecendo-se, possui-se na identidade fundamental de todos os seus momentos, vê-se na sua unidade e propõe a si mesma o seu próprio fim”.

A realização da plenitude do espírito não é imediata: tem graus, por assim dizer de aproximação, em função da intensidade da intimidade, que aliás já se manifesta nos graus íntimos. “Fazendo-se toda a evolução do espírito dentro da sua própria natureza e não sendo mais do que a gradual realização de si mesmo em si mesmo, há oposição entre as sucessivas esferas do seu desenvolvimento, numa contradição.

“É assim que o espírito, sem sair de si, se cria e fecunda continuamente, compenetrando-se cada vez mais com a sua própria essência, extraindo dela, da sua infinita virtualidade, momentos cada vez mais complexos e ricos de ser, até atingir a mais alta consciência de si”. Desta altura suprema “reconhece-se então idêntico com o eu absoluto e independente de toda a fenomenalidade: concebe Deus como o tipo da sua mesma plenitude, concebe e sente a vida moral como a esfera da realização desse ideal”.

Outro não é o pensamento nuclear da inspiração do soneto Transcendentalismo, que neste passo das Tendências encontra o seu melhor comentário, sem aliás dispensar a mediação da visível influência hegeliana:

Já sossega, depois de tanta luta,

Já me descansa em paz o coração.

Cai na conta, enfim, de quanto é vão

O bem que ao Mundo e à Sorte se disputa.

Penetrando com fronte não enxuta,

No sacrário do templo da Ilusão,

Só encontrei, com dor e confusão,

Trevas e pó, uma matéria bruta..

Não é no vasto mundo — por imenso,

Que ele pareça à nossa mocidade —

Que a alma sacia o seu desejo intenso

Na esfera do invisível, do intangível,

Sobre desertos, vácuo, soledade,

Voa e paira o espírito impassível!

O progresso no sentido da conquista da plenitude da consciência opera-se, assim, segundo uma hierarquia de fins, cada vez mais altos e mais ricos de ser, e na qual a interiorização do ideal moral aparece como o “fim último, aquele de que os fins anteriormente propostos, limitados e transitórios, eram só imagem e preparação. Este fim último, porém, sendo imanente, confunde-se com a perfeição do mesmo ser: na atração dele reconhece a causa de toda a sua evolução, que só para realizá-lo tendia. Pela realização dele é livre — livre na medida exata em que a realiza — porque, quanto mais o realiza, mais realiza a potência e perfeição do seu próprio ser.


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