Evolução espiritual de Antero

É, esta identidade que indica o caminho da síntese, ou mais rigorosamente, a dissipação da ilusão do determinismo universal pela apreensão da “natureza íntima de todas as forças, ainda as mais elementares e, na aparência, mais completamente passivas... Dizer força-causa é dizer forças cujas determinações partem radicalmente da sua mesma natureza e têm, para dentro da esfera dos motivos externos, aparentes e mecânicos, por verdadeiros motivos estados íntimos. É dizer, por conseguinte, força espontânea. É, pois, no terreno da ideia de espontaneidade que se resolve a antítese determinismo — liberdade”.

A Natureza somente na aparência é o reino da passividade, porque na essência de todo o existente palpita algo de espontâneo, isto é, a vontade de realizar o próprio fim. “Não há ser totalmente passivo e em cujos atos se não envolve algum elemento, por ínfimo que seja, da sua natureza absoluta: não há ser completamente determinado por outro e reduzido a uma nua forma sem essência. Palpita em tudo uma vontade própria, a vontade de realizar o próprio fim. Há, pois, alguma coisa de espontâneo e um acordo do ser com a sua verdade profunda e com a sua infinita virtualidade ainda nos fenómenos mais elementares da matéria, onde o determinismo mecânico parece triunfar”.

As causas dos fenómenos não lhes são meramente externas; pelo contrário, como que residem na própria natureza dos fenómenos. “A pedra que cai para o centro da terra, a molécula que se une a outra molécula, a gota de água que se vaporiza, o vapor que se condensa, não obedecem passivamente às condições que determinam essas formas de atividade, porque não são as condições que criam essa atividade em si mesma, nem ainda modalidade alguma, mas é a natureza autónoma dos seres que, em dadas condições, produz aquela forma de atividade que a elas corresponde, e está de acordo com as condições justamente porque está de acordo consigo mesma”. Por outras palavras: o fenómeno antecedente não cria o consequente, é só condição para que ele se produza. A causa do fenómeno está na mesma natureza do ser onde ele se dá, ou antes, do qual ele é essencial modalidade”.

No fundo, a verdadeira causa dos fenómenos reside no ser dos mesmos fenómenos, cujo fim último é a afirmação plena de si mesmos.

Este fim é o germe e o prenúncio da liberdade, que assim aparece na própria essência de tudo quanto existe e se manifesta de tal modo que “na espontaneidade inconsciente da matéria está a raiz do que na consciência e na razão se chama verdadeiramente liberdade”. Há, con-sequentemente, vários graus de liberdade, desde a espontaneidade inconsciente, passando pela espontaneidade condicionada, até à espontaneidade plena, isto é, a criação consciente e autónoma das determinações em vista do próprio fim.

Na espontaneidade plena, ou o que tanto vale, na liberdade plenamente consciente, “o motivo da determinação identifica-se com a essência e o fim do ser que se determina: este, conformando-se com o motivo, conforma-se exclusivamente consigo mesmo. A sua determinação é agora um facto absolutamente seu, é ele mesmo, na plenitude da sua essência refletindo-se na realidade, é essa essência, substituindo-se a todas as leis exteriores, feita lei única da sua atividade. Agora quanto mais se determina, mais livre é, porque as suas determinações, motivadas só pelo seu próprio fim, não envolvendo elemento algum estranho à sua substância e tirando dela a sua matéria e a sua forma, são atos perfeitamente adequados à sua potência e outras tantas realizações da sua mesma unidade. Agora, o determinar-se já não é limitar-se: é expandir-se, é desdobrar-se indefinidamente numa íntima atividade, que, criando um mundo seu, se cria ao mesmo tempo com esse mundo. Mais um passo ainda e, nesse estado sublime, o Universo fenomenal desaparece como uma fantasmagoria: a realidade única verdadeira é agora o ato simples de um ser todo ele ideia pura e causa e fim da própria ideia, criador em todos os seus momentos e em cada um deles pleno e uno, como se a sua infinita virtualidade estivesse presente toda inteira em cada uma das suas determinações.

“Este ser, que está todo em cada um dos seus atos, cuja essência se substitui ao Universo e cuja atividade não reconhece outros limites senão as leis da sua própria natureza, realiza por certo o ideal de ser livre. É por isso também que é um ser só ideal. Deus, se Deus fosse possível, seria esse ser absolutamente livre. Mas, por isso que não é real, é que é verdadeiro. Ele é o tipo da plenitude do ser, tipo de que a nossa liberdade moral, aquela que com tamanhos esforços consegui-mos realizar, é só vaga imagem, longínqua semelhança. Esse ideal da nossa essência, esse eu do nosso eu, último e mais profundo, é o centro de atração de toda a vida espiritual: é na união com ele que nos sentimos livres, livres na medida exata dessa união. Segredo mais íntimo do ser, mas tão sepulto na inconsciência das coisas, não o descobre o mundo: revela-o a consciência e é a razão o seu intérprete soberano.

“Só pela razão somos verdadeiramente. Por ela se nos torna patente o mistério da nossa íntima atividade e nos conhecemos como força simples, espontânea e criadora das próprias determinações. Na plenitude dessa espontaneidade reconhecemos o nosso verdadeiro fim: ele se substitui, como motivo interno, último e absoluto motivo, aos motivos exteriores. A vontade, condicionada agora só pela sua própria essência, é livre. A lei da causalidade reduziu-se à lei da razão, dessa razão, que, exprimindo a verdade total do nosso ser, é ela mesma o mundo da liberdade”.

Antero dá-nos nestas páginas, belas pela universalidade da conceção e impressionantes pela significação e pela elevação moral, a essência do seu pensamento e, principalmente, da função e valor que atribuía à Filosofia. Na génese, não é difícil surpreender a compenetração de dados, juízos e estímulos que radicam principalmente nas metafísicas de Eduard von Hartmann, de Leibniz e do idealismo alemão; se aquela lhe deu o sentimento da consistência científica, estas, deram--lhe a diretriz do pensamento.

Mostrar e provar que assim foi, na realidade, importaria considerar num critério diverso do até agora seguido a exposição do pensamento de Antero; por isso, baste acentuar somente que é pela identificação da razão e da vontade num fim absoluto de ordem moral, que o espírito humano atinge o mais alto grau de plenitude e autonomia.

A vida espiritual é uma ascensão para o absoluto. Limitado e condicionado pelo corpo, pelos instintos e pelas ações exteriores, isto é, por mecanismos, o eu liberta-se deste cativeiro substituindo aos motivos externos motivos próprios, “faz-se fim onde era meio e, de particular e limitado, transforma-se finalmente no que se diria um outro eu, impessoal, absoluto, todo razão e vontade pura. Identificado com o próprio ideal, só agora é ele mesmo. Não concebemos que outra coisa seja ser livre”.

A causalidade reduzida à lei da razão, a lei da razão exprimindo o mundo da liberdade, a liberdade causa final de tudo o que existe, — eis o processo dialético pelo qual se dissolve a ilusão do mecanicismo e do determinismo universal.


?>
Vamos corrigir esse problema