Evolução espiritual de Antero

António Sérgio viu nesta maneira de se exprimir a troca do “vocabulário de Hegel pelo vocabulário de Schopenhauer, o “Espírito” pelo “não-ser”, e com esta permuta passamos “a teoria para o homem, e sob a veste especulativa reaparece a alma mística que negava o mundo dado, exaltando a Virgem Santíssima e a absorção no Nirvana”. O trânsito seria ilógico e o homem teria subvertido a teoria se, com o crítico subtil, atribuíssemos ao não-ser o sentido de Schopenhauer ou budista, que não foi, em meu juízo, o que Antero lhe atribuiu. A transição do ser para o não-ser, que equivale à plenitude do ser, é uma forma hegeliana de exprimir o Absoluto —, ser puro e indeterminado, no qual, segundo Hegel, o ser e o não-ser são momentos (v. g. Enciclopédia, Lógica, §§ 86 e 87), isto é, a transição para a unidade mediante a superação do contraste.

Sem dúvida, Antero deduz da essência do Bem, ou por outras palavras, da suprema objetivação da Liberdade, a identificação da beatitude com a renúncia. Com António Sérgio reconheço que subjazem nesta identificação a conceção de Schopenhauer e o Nirvana budista, mas afigura-se-me também incontestável a transformação do conceito schopenhaued ano da renúncia, isto é, onde Schopenhauer pôs a negação do eu, encontrou Antero a forma por excelência da afirmação da intensidade da vida espiritual.

Plenitude, diz Antero e este termo não significa a totalização abso-luta do espírito, a conquista da liberdade pura? Leonardo Coimbra fala na “sede de substancialismo”, que levou Antero “a tomar como facto último, irredutível facto da Filosofia, donde esta deve partir como pedra angular e eterno alicerce, a antinomia do que subsiste e é em si o Absoluto e do que flui, transita e se polimorfiza e é a Realidade”. Como facto terminal, sem dúvida mas não irredutível, se bem considero, porque justamente no período imediato, Antero como que exemplifica o seu pensamento, equiparando o “refluxo do eu”, a transição do ser para o não-ser”, com a “união da alma com Deus”, na linguagem “simbólica” dos “místicos”, e esta imagem não exprime, porventura, a dissolução da antinomia, a afirmação de uma posse, intrinsecamente incompatível com a dissolução no nirvana ou no não-ser, como negação?

“Nós diremos, simplesmente, continua Antero, que é a união do eu com o seu tipo de perfeição, ou talvez com maior simplicidade ainda, a realização na consciência do seu momento último e mais verdadeiro”. Esta união do eu (refluxo ou transição) com o tipo da suprema perfeição, isto é, o Bem, e o Bem é perfeito porque é a única verdade total, sem as limitações de todas as outras verdades, — tem uns longes de semelhança com a teoria do conhecimento do terceiro género de Espinosa, porque, como ele, serve para justificar o sentimento de posse da eternidade. “Só quem, dissolvendo a própria vontade na vontade absoluta e identificando-se com ela, renuncia ao eu limitado e a tudo quanto é dele      o seu egoísmo, as suas paixões, o seu erro profundo e a sua inenarrável miséria — só esse alcançou a vida eterna. Confundido com o que sempre permanece, com o que é em si e por si, entrou no ilimitado, no inalterável, e subsiste como ele eternamente. Esta renúncia, verdadeira imortalidade, é por isso mesmo a fonte de toda a virtude”.

Por esta conversão, Antero atingira a plenitude do conhecimento, compenetrando mutuamente o conhecimento que explica com o conhecimento que compreende e com o que salva, porque a liberdade consiste na plena identificação da consciência individual com a realidade suprema, que é ao mesmo tempo o fim máximo e terminal da existência. Alcançando-a, o indivíduo perde o que tem de singular, mas ultrapassa todas as limitações e contradições e logra o sentimento da eternidade, como conquista atual do espírito, pela identificação com um objeto eterno, gozável na vida presente.

Nesta noção de liberdade palpita o idealismo de Fichte e a fenomenologia do espírito, de Hegel, mas também se pressente que Antero, como Espinosa, repudia por contraditório e imoral o fantasma de uma imortalidade post-mortem, isto é, de uma eternidade que começa ou de uma imperecibilidade que graciosamente se acrescentaria externamente ao espírito à hora da morte ou ulteriormente. Sentimus experimur'que nos aeternos esse também poderia ser escrito, mas ao contrário do Filósofo da Ethica more geometrico demonstrata, Antero extrai da fruição da eternidade, não o amor intelectual de Deus, o gozo indefinido do ser, a alegria perene, mas uma moral de renúncia, sem exaltações que fascinem e austera na magnanimidade ascética.

“O justo, na sua união com o ser perfeito, só vê no indivíduo limitado, que é segundo a Natureza, um resto de escravidão, de particularismo, de erro, que o impede, até onde subsiste, de realizar plenamente aquela união: é renunciando a ele que torna essa união efetiva, tanto mais efetiva quanto mais constante, mais completa for a renúncia. A renúncia a todo o egoísmo é para ele o caminho direito que o leva à liberdade, à perfeição, à beatitude. Como não há-de então o justo dar-se aos outros, dar-se a todos os seres, se com cada ato de dedicação, conquista e firma a própria beatitude? Libertando-os, liberta-se: aperfeiçoando-os, aperfeiçoa-se: beatificando-os, beatifica-se. Para conseguir o próprio bem, tem de se fazer como que o instrumento do bem universal. E nem verdadeiramente para conseguir o próprio bem: porque, despojado de personalidade e egoísmo, morto para o eu individual, o bem atrai-o em si ou fora de si, indiferentemente, e tende a realizá-lo seja onde for, seja sob que forma for, simplesmente porque é o bem. A sua existência agora já não é a de uma individualidade particular, circunscrita no tempo e no espaço, condicionada pelo temperamento, pela raça, pela nação, pelo período histórico, pela educação, por mil circunstâncias fortuitas: não: é como que a existência de um princípio universal, impessoal, absoluto, atuando indiferentemente num ponto do espaço, e a sua obra, a virtude, não é também uma obra particular e transitória, mas universal e absoluta. A virtude, liberdade suprema, é por isso a realidade por excelência, a única realidade plena. Tudo mais são vagas, incertas aproximações do ideal, pálidas imagens, grosseiros símbolos do ser verdadeiro. A consciência do justo é o único templo do único Deus; e, nesse templo, a renúncia ao egoísmo é o único culto. Cessasse um só instante esse culto, esse holocausto do egoísmo nas aras do ideal, e imediatamente toda a vida moral se suspenderia: no instante seguinte ter-se-ia dissolvido. O mundo moral só subsiste por esta renúncia.

“Ela enche de intrepidez o coração dos heróis, de constância a vontade dos justos, de unção a alma dos santos. Ela dá aos simples a candura e a graça; dá aos humildes a dedicação sem alardes; a uns e a outros o perfume da virtude que se ignora. Ela é a inspiradora secreta da grande arte como do grande pensamento. Essa pouca justiça, que consegue penetrar neste mundo de luta, cegueira e egoísmo, vem toda dali, porque só ali tem a sua raiz profunda. Superior ao destino, vencedora da fatalidade, mais profunda do que toda a ciência e toda a especulação, só ela torna patente o íntimo segredo das coisas e é, em si mesma, a única verdade evidente, o único saber sem dúvidas nem obscuridades. Ela vence a morte, porque faz compreender a significação do êxito final e apreciar quanto ele vale. Se pois a perfeita virtude, a renúncia a todo o egoísmo, define completamente a liberdade, e se a liberdade é a inspiração secreta das coisas e o fim último do universo, concluamos que a santidade é o termo de toda a evolução, e que o universo não existe nem se move senão para chegar a este supremo resultado. O drama do ser termina na libertação final pelo bem”.


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