Evolução espiritual de Antero

No lance, Antero revelou, a um tempo, notáveis qualidades de conspirador e de escritor, pois organizara (?) a Sociedade do Raio “em poucos meses de carbonarismo sui generis”, agremiando “mais de trezentos estudantes”, e redigira o vibrante Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à opinião ilustrada do País (1862-63), peça singular na copiosa literatura protestaria coimbrã e cuja patente sinceridade concorreu possivelmente para a falta de apoio que levou o Reitor a depor o cargo.

Vencera a partida o estudante que as informações confidenciais da Reitoria diziam ser “muito inferior”, mas erraria quem visse na vitória apenas o sucesso da bem urdida vingança dos réus de 1859. O ressentimento suscitado pela humilhação dos castigos e dos falsos depoimentos concorreu, sem dúvida, para o conluio da Sociedade do Raio; no entanto, Antero, no Manifesto, transpôs as fronteiras mesquinhas da vingança para conferir ao protesto o sentido coletivo e romântico de uma manifestação contra o foro académico. Não escondia a animadversão contra o Reitor, — “um homem que os estudantes não amam, nem respeitam, porque se não sabe fazer nem respeitado nem amado”, mas insistia sobretudo no “jugo de uma legislação iníqua, porque é velha; necessariamente injusta, porque é confusa”, e na vindicação da “igualdade perante a Lei”, no julgamento por “homens desapaixonados, e não os que mais estão no declive escorregadio da vingança”, e na discriminação “entre ciência e costumes, e acabe por uma vez essa pena infamante que, com um traço negro de tinta, mata a reputação, o futuro de uma vida em começo”. E o Manifesto concluía:

“Que querem os Estudantes da Universidade?

“Que se indague tudo da ciência, que é património de todos, e nada da vida particular, que é asilo individual e inviolável; que por detrás da cadeira de ensino se não lobrigue o olho do esbirro; que se faça progredir a ciência, e se deixe a moral desenvolver-se por si.

“Que querem os Estudantes da Universidade?

 “Justiça! Um olhar de pai desse Portugal, velho que por todos os lados se remoça, e só teima em esquecer no frio esmirrador da meia-idade... quem? Os melhores dos seus filhos!

“Justiça! Um raio de sol também para nós, desse sol de liberdade e progresso que luz para todo o século, e só a nós nos deixa nas trevas do passado. Um lugar no banquete das garantias liberais, que nos é devido, porque essa liberdade custou o sangue de nossos pais, o nosso sangue! Garantias para quem quer ser livre, digno e justo; auxílio a estes escravos que querem, um dia, ser homens e cidadãos!”.

Pode fazer-nos sorrir a revolta destes “escravos” contra o amparo de um privilégio que mais ou menos paternalmente os resguardava dos registos policiais e dos tribunais comuns, e a fome de liberdade, proclamada com tanta fartura de palavras por quem tinha a mesada pontual e a condescendência sorridente da autoridade para dizer e fazer o que lhe desse na real gana, mas o sorriso volve-se em compreensão quando se atende a que no “ardor intrépido” destes “sentimentos apaixonados”, corno Antero os designa nas Duas Palavras preambulares das Primaveras Românticas (1872), se dramatizava a ideia, como então se chamava ao reportório de crenças metafísicas que aspiravam a influir decisivamente na marcha social. Com efeito, os exageros do Manifesto compaginam-se estreitamente às objurgatórias e declamações do terceiranista de Direito José Leite Monteiro, no folheto O Ultramontanismo e a Instrução Pública em Portugal (Coimbra, 1863), publicado “a propósito da Manifestação Académica do dia 8 de Dezembro de 1862”, contra “as investidas dessa quadrilha de bandoleiros de sotaina, salteadores da paz moral das famílias, Hildebrandos em comissão no século 19.°” e de exortação das utopias do Victor Hugo, que “os moços estudiosos, apóstolos e ao mesmo tempo sacerdotes do ideal devem fazer carne e osso”, para que possam conquistar o “triunfo da liberdade”.

Esta subversão da realidade trivial numa catadupa de ilusões, nascidas pela maior parte no terriço quente de alguns livros de três francos e cinquenta, foi, de certo modo, endémica “naquela encantada e quase fantástica Coimbra” de 1862 (Primaveras Românticas). Poucos resistiram ao contágio. Já na despedida do curso, no seu quinto ano, Antero deu-lhe ainda expressão e vida, aquando da Rolinada (1864), conseguindo arrastar mais de duzentos estudantes para o Porto — “o berço da Liberdade!” —, a pretexto de falta de segurança para as suas pessoas, devido à presença de uma força de Infantaria que a Coimbra chegara para restabelecer a ordem!

“Quem não for digno, apostrofara à multidão de rapazes reunidos em assembleia geral da Academia, quem se sentir com disposições para escravo, fica e vai às aulas, sob a ameaça das baionetas!

“Quem tiver no peito um coração de homem livre, volta as costas ao militarismo e sai de Coimbra! E vai para onde? Para a terra, que foi berço da liberdade portuguesa; vai para o Porto!”.

Bastam estes episódios para mostrar que a tradição altiva e idealista do estudante de Coimbra não murchou na alma de Antero, aliás sem gastar perdulariamente a sua mocidade vigorosa. Desde o século XVI que o estudante coimbrão projeta silhuetas diversas da despreocupação folgazã —, a soiça do espadachim quinhentista, o bródio do pícaro seiscentista, a logração do faceira e do tunante setecentista, a “república” e o pregão literário e político de oitocentos, depois de Garrett, e sempre, como traço de ligação das idades e das épocas, a satisfação de rir e de dizer sim e não, sinceramente, sem preocupação nem receios.

Os tempos de Antero assinalaram-se com a novidade do vulto garboso e desempoeirado do estudante que condecora o tumulto e a troça com as veneras do idealismo —, a luta pela Liberdade, a defesa da Justiça, a desafronta da Dignidade, palavras mágicas que enfeitiçaram gerações até à hora cinzenta do atual herói desportivo, cuja euforia vital já não defronta garraios nem se dá à descoberta da Natureza em caminhadas pelas serras do Buçaco ou do Dianteiro, mais ao pé da porta. Os que viveram esses tempos jamais os esqueceram; ninguém, porém, como Eça de Queirós, os fixou com os traços imorredoiros do talento e do espírito:

“Fizemos três revoluções; derrubámos Reitores excelentes, só pelo prazer de derrubar e exercer a força demagógica; proclamámos uma manhã a libertação da Polónia, mandando um cartel de desafio ao Czar; penetrámos, em comissão, num cemitério, para intimar a morte a que nos revelasse o seu segredo; destruímos numa noite, através da cidade, todos os mastros e arcos de buxo e molhos de bandeira e obeliscos de lona, erguidos para celebrar não sei que glória nacional, porque eles contrariavam as leis da nossa estética; abandonámos a Universidade, num clamoroso êxodo, para ir fundar nos arredores do Porto uma civilização mais ou menos em harmonia com o nosso horror aos compêndios; atacámos e dispersámos procissões por as não considerar suficientemente espiritualistas; organizámos uma associação secreta para renovar a guerra dos Titães e destronar Jeová... Fomos medonhos — e quase todos os anos nos batemos com as tropas que o Governo mandava para nos manter dentro da decência e do raciocínio. Na realidade (com exceção de estudar) tudo fizemos: — mas nunca metemos os ombros a varais de carros, nunca puxámos...”.


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