Evolução espiritual de Antero

Nolen procurava, essencialmente, mostrar três coisas: a constância da problemática fundamental de Leibniz, que tem por objeto a conciliação do moralismo e do naturalismo e da filosofia dos antigos com a dos modernos; a legitimidade da crítica de Kant, pelo sentido da atividade mental, que consiste em reportar à constituição do sujeito a unidade das aperceções e dos juízos; e a superação destas duas heranças pelas sínteses metafísicas do idealismo alemão.

Outra não foi a problemática das Tendências; no entanto, ao contrário dos metafísicos do idealismo germânico, Antero não partiu do dualismo do sujeito e da coisa-em-si, mas das duas realidades que a ciência e a filosofia especulativa a seu juízo estabeleciam: a Natureza; submetida ao mecanicismo, e o Espírito, essencialmente livre. O desígnio, porém, continuava a ser o mesmo do “do grande século de Kant e Hegel”, porque “uma filosofia positiva é uma quimera. Quem diz filosofia, diz idealismo. Só o sistema das ideias contém inteira a explicação do sistema das coisas. O movimento não esgota o ser: o ser implica movimento e ideia. Os naturalistas, desprezando ou ignorando as ideias, ignoram metade das coisas e a sua filosofia é só meia filosofia, ou antes, é só um arremedo da filosofia. Tudo quanto é, é racional, disse Hegel”.

E não só no desígnio senão também no desenvolvimento e na conclusão, porque, como os metafísicos do idealismo alemão, muito principalmente de Fichte, Antero pensa que a atividade do espírito tende para a unidade absoluta do sujeito e do objeto — recorde-se a afirmação da identidade fundamental do objeto e do sujeito — e para a plenitude do conhecimento e da liberdade, pelo que o eu penso é expressão conceptual da realidade, da qual o eu devo é expressão prática.

Por isso ainda, Antero substituiu o idealismo crítico de Kant pelo idealismo objetivo, ou como ele diz em A “Filosofia da Natureza” dos Naturalistas, pelo “materialismo idealista”, não separou nem isolou a realidade natural da realidade lógica e da realidade moral, nem tão-pouco ensaiou sequer um tentame de aplicação do método transcendental —, o que aliás não quer dizer que não haja respirado fundo a atmosfera criticista, bem sensível na estrutura da sua atitude reflexiva, orientada quase exclusivamente para as manifestações do Espírito e não para os objetos, no apreço da reflexão racional e no respeito pelo saber exato, que é uma das perenes e mais salutares lições de Kant.

Esta síntese, conjuga, a seu ver, “as duas tendências divergentes da inteligência moderna” e ao mesmo tempo é “conciliação”, porque “todas as grandes correntes do pensamento filosófico do nosso século se acharão igualmente representadas nela, cada uma por aquilo que tem de legítimo: o positivismo, pela coordenação lógica dos dados científicos numa ordem de evolução formal: o idealismo dos alemães, pela afirmação fundamental da “identidade do ser e do saber” e pela conceção duma evolução dialética da realidade; o espiritualismo, pelos elementos psíquicos fornecidos à especulação, pela ideia capital de força, que só na consciência tem a sua origem, e pela redução da finalidade, em última análise, à lei moral, que é a solução da antítese determinismo-liberdade; o criticismo, finalmente, pela verificação severa dos princípios, pela dúvida sistemática, estímulo contínuo da razão, que representa aquela parte salutar do ceticismo, sem a qual a inteligência, enlevada na própria contemplação, esquece o que há de contingente e relativo em toda a verdade e se esteriliza, imobilizando-se naquela espécie de fanatismo intelectual, que é o dogmatismo”.

Foi este o último ideário de Antero. Ele define e caracteriza, como nenhum dos anteriores, a individualidade do pensador, pois o ideário do homem-novo fora produto de assimilação e o de desesperado, se lhe deu dramatismo ao pensamento não lhe deu voo filosófico pessoal, — nem podia dar-lho, porque o filosofar metafísico não se nutre do aniquilamento e do nada, senão do existente, na máxima plenitude e densidade.

Perante o derradeiro ideário do filósofo, e estou em dizer, do homem total, a angustiosa paralisia do sentimento vital, que o levou ao suicídio, não surge como termo do itinerário de um desesperado pessimista. “Morrerei, vaticinava na Carta autobiográfica, com a satisfação de ter entrevisto a direção do Pensamento europeu, o norte para onde se inclina a divina bússola do Espírito humano. Morrerei também, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da alma humana, e, como diziam os antigos, na paz do Senhor!”

Antero pertence aos eleitos que não deixam estancar o curso da vida interior, renovando-se incessantemente, de tal forma que pode surpreender-se na evolução da sua vida espiritual uma série de conceções que são autênticos itinerários para a sabedoria, de arquitetura valorativa e sempre sob o primado da razão prática.

O plano de desenvolvimento deste seu último ideário, apesar de conciso em relação à grandeza dos modelos que o fascinaram, os sistemas do idealismo alemão pós-kantiano, termina, como cumpria, por uma apologia de majestade moral, mais eloquente e humana que o hino de Rousseau à Consciência e a apóstrofe de Kant ao Dever.

À sua razão e à sua consciência, o homem justo aparece como o fim da existência e assim tinha de ser, porque o homem é o único ente que pensa e pode elevar-se ao ideal da Humanidade, inseparável da consciência da Justiça e do Bem.

Páginas como a da justificação racional e ética da renúncia ao egoísmo e à autolatria, onde a beleza moral ofusca a própria beleza literária, não as inventa o pensar formalista: brotam espontâneas dos recessos mais íntimos da alma, e são fruto de uma convicção que imprime unidade ao pensamento.

“Um carácter mole por natureza, disse Fichte, decaído ou submetido pela escravidão do espírito ou pelos refinamentos do luxo e da vaidade não se elevará jamais ao idealismo”. Se nada mais soubéssemos da sua vida, bastaria a sua apologia da renúncia para que Antero fosse para nós, mesmo os que pensamos e sentimos que a Beatitude é alegria e posse imperturbável de espírito compreensivo, o que foi para os que o conheceram: Santo Antero.

Volvidos vinte e quatro anos com esta filosofia de claridade racional e de otimismo moral, Antero alcançara uma resposta raciocinada e consciente à pergunta da mocidade: “A existência atravessaria os espaços com seu voo de águia só para no fim encontrar o nada e precipitar-se nele?”

Foi o coração quem a ditou, embora a razão discursiva procurasse dar-lhe consistência. Completamente? Responder, seria criticar, porventura até refutar. Dir-se-á poética, pela forma como alarga a consciência e se situa na Natureza, reduzida a série de eventos desprovidos de valor intrínseco; mas as suas repulsas são ainda as nossas repulsas, os seus anelos, os nossos anelos, e qualquer que seja a incoerência das ideias e os saltos da ordem subjectiva para a objetiva, da existência para o valor, singulariza e enobrece esta conceção da liberdade e este sentido da moralidade o esforço para a criação espiritual de um Mundo mais justo, e para a emancipação deste desolador cativeiro de cegueiras, tradições e mecanismos, que nos encadeiam e expulsam do nosso ser profundo e do nosso destino humano.


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