Evolução espiritual de Antero

Como síntese do que até agora escrevemos, pode dizer-se com Eça de Queirós, que “Antero resumiu, com desusado brilho, o tipo do académico revolucionário e racionalista”. Nem só este cunho, porém, vincou a sua escolaridade, porque também o seduziu o amor da glória literária, aliás partilhado por muitos dos seus contemporâneos, cujos nomes os próprios eruditos mal recordam hoje.

Nenhuma outra quadra da história literária dos estudantes de Coimbra -- obra jamais tentada e digna de execução — patenteia como esta maior número de publicações; só durante os anos em que frequentou a Universidade saíram dos prelos de Coimbra os Prelúdios Literários (1858-1860), a Estreia Literária (1858-60), A Saudade (1859), O Ateneu (1860), o Académico (1860), O Cisne do Mondego (2.° deste título, 1860-61), o Fósforo (1860-61), a Estreia Literária (2.° deste título, 1860-61), o Grémio Alentejano (1861-62), o Tira-teimas (2.° deste título, 1861-62), O Minho (1862), a Crisálida (1863-64) e O Atila (1863-64), cada um dos quais erguia o pendão de um grupo, havendo até um, O Atila (1863), que hasteava “a bandeira da paz” por lhe custar “ver o corpo académico, desconjuntado, partido, esfacelado em mil individualidades caprichosas e atoadas, só propugnadoras do egoísmo e do eu intratável”.

Foi nos Prelúdios Literários, em 1859, que Antero fez a sua estreia, e desde este ano até 1863 colaborou sucessivamente no Cisne do Mondego, no Fósforo e no Académico; em 1860, no Grémio Alentejano; no Tira-teimas em 1861 e 1862, e no Atila, em 1863; autonomamente, em folha avulsa, publicou em 1862 e 1863 várias poesias, quase todas recitadas no Teatro Académico, e sob a forma de livro os Sonetos, em 1861, e os poemetos Fiat Lux e Beatrice, em 1863.

Esta atividade, hoje coligida nas Prosas (vol. I) e em grande parte nos Raios de Extinta Luz, nas Primaveras Românticas e nas Odes Modernas, brotou naturalmente de uma vocação pujante, mas cresceu e expandiu-se com a excitação literária da sua geração, talvez menos febricitante que a dos ultrarromânticos do Trovador (1844-48), mas sem dúvida mais original e culta do que ela.

A colaboração de Antero repartiu-se simultaneamente pela poesia e pela prosa, quase sempre de tendência crítica, persistindo nestas formas de atividade literária até à publicação dos Sonetos Completos, em 1886.

Os primeiros escritos até 1857 são, como é natural, a expressão de sentimentos elementares, na índole e na estrutura, em correlação com a formação de adolescente, acentuando principalmente a nostalgia, isto é, “os pesares tão saudosos” da “terra onde recebera essas primeiras emoções... quase ainda no berço” (Prosas, I, 92). Com o avanço na escolaridade universitária, o horizonte intelectual dilatou-se-lhe e a sua vida interior sofreu verdadeiros sismos psicológicos, que abriram fossos na continuidade do seu ser e lhe rasgaram sendas novas.

Como todos os estudantes, de então e de sempre, que não são meramente escolares matriculados e possuem a coragem intelectual de salvarem a alma do extravio na insignificância, Antero, por um lado, teve de se adaptar à tradição do ambiente, e por outro, de visionar um sentido da existência e um estilo de vida diversos e mais atraentes. Como adaptado, a sua vida de estudante é uma estampa magnífica da tradição coimbrã; como adaptante, urna personalidade que dia a dia se constrói, olhos fitos em ideais estéticos e morais.

Não perdeu jamais o sentido da terra natal — vejam-se os escritos juvenis A lírica açoriana (1860) e Necessidade de uma doca na ilha de S. Miguel (1861) — mas o desenvolvimento normal da personalidade, a vibração dos novos afetos, a troca de impressões, tão peculiar do meio coimbrão, a excitação literária do ambiente estudantil, as revelações surpreendentes de algumas leituras, conduziram-no à descoberta de valores mais amplos e atrativos e, portanto, ao deslumbramento de novos temas. Estes valores e estes temas, porém, nem na índole nem na expressão foram indiferentes, e muito menos hostis, ao viático de sentimentos e de noções com que saíra da casa paterna, porque até 1861-1862, no terceiro ano, a meio do curso, as suas prosas e o seu

canto e a lira

Liberdade, a Amor e Deus votada,

(Palavras aladas (1860) in Raios de Ext. Luz)

são de certo modo a sublimação deles.

É possível que a ordem cronológica da sucessão destes temas na sua sensibilidade não coincida com a ordem tópica ditada pela métrica deste verso; no entanto, objetivamente, na expressão literária, a Liberdade, o Amor de Deus, foram, de certo modo, coexistentes, pelo menos a partir de 1860. No tempo e na hierarquia da estimativa, o amor foi o primeiro, se acaso é possível estabelecer nesta ocasião fronteiras entre o amor humano e o sentimento do divino em quem considerava a suprema efusão afetiva pela mulher sem apetite pagão ou gozo sensual, pura e religiosamente, como dizia da poesia amorosa de Lamartine: — “amor cristão, purificado de toda a mácula carnal nas chamas do espiritualismo,... a oração que eleva os olhos para Deus: é a união que, começada na terra, terá seu complemento no Céu” (As meditações poéticas de Lamartine, de 1860, in Prosas, I, 70).

Lamartine, Herculano, isto é, o poeta da Harpa do Crente, e Soares de Passos, sublimaram a sentimentalidade religiosa da meninice, e devido, quiçá, às suas influências, o Deus que o inspira, apesar de censurar nas Meditações Poéticas o “erro” do “Panteísmo” (Prosas, I, 73), talvez não seja, embora inconscientemente, sem qualquer intenção heterodoxa, o Deus da ortodoxia, porque parece ser o nome designativo da confiança numa Providência bondosa e justa, a crença na vida futura e a veneração da Virtude e do Sacrifício:

És tu, oh Deus!, que me chaMas!

És tu, Senhor, que me inflamas

Naquelas ardentes chamas,

Que me dão tão pura luz!

És tu, oh Pai! que da altura,

 Olhando a minha amargura,

Me estendes a mão segura,

A mão que a ti nos conduz!

(Aspiração, (1861), in Raios de Ext. Luz)

O sentimento do divino impregnou-lhe inteiramente o estro nesta rápida quadra de 1859 a 1861, como testemunham as poesias de então, designadamente o Salmo e Força-Amor, de 1860, e Laço de amor, Paz em Deus e Aspiração, de 1861; e o sentimento da Liberdade, que não propriamente uma determinação precisa da respetiva ideia, começou a incitar também a sua pena de prosador.

Poeticamente, a mais antiga manifestação deste sentimento parece estar associada ao entusiasmo pela gesta de Garibaldi e logo se apresentou vestida à moda parenética e oratória que a Liberdade sempre teve no seu estro:

Pois bem! a esse povo escravo

 Bastou-lhe o brado dum bravo

 Para se erguer,— ei-lo em pé!

E aos tiranos, aos senhores,

Aos fortes, cheios de fé,

Bastou-lhes ouvir os clamores

Dessa turba esfomeada

Para deixarem a espada...

Raia a nova claridade,

A aurora da liberdade,

De um proscrito no palor!

(À Itália (1862), in Raios de Ext. Luz)


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