Na prosa, a expressão desta ideia-força, que será a trave-mestra da sua conceção da vida, é anterior, surgindo em 1860 nas notícias laudatórias dos Estudos sobre a Reforma em Portugal (1851), de J. F. Henriques Nogueira, e da Felicidade pela Agricultura (1849), de Castilho, com a feição político-social, que se manterá constante no seu pensamento e sem a qual se não compreenderia o vinco parenético das poesias deste tema: “Associação e Liberdade: são estas as duas ideias salvadoras — e só elas — que, uma pela outra completando-se, podem levar a bom fim as nossas modernas sociedades” (Leituras Populares, in Prosas, I, 32).
Dois anos mais tarde dirá: “Religião, Tolerância, Liberdade, eis a nossa divisa” (Questão romana, Prosas, I, 158) e na famosa Saudação ao Príncipe Humberto, também de 1862, declara altivamente saudar, em nome dos estudantes, não o “representante da Casa de Saboia”, mas o “filho de Vítor Manuel... desse de quem os reis da Europa aprendem como, neste século ainda, se pode ser popular sendo-se Rei; de quem espera a Igreja Cristã uma nova época de verdadeira grandeza e liberdade verdadeira” (Prosas, I, 159-60).
As poesias deste período e desta índole denunciam influências ingenuamente acolhidas, com frases que mais parecem estrépitos de retórica que versos de alada sugerência, compreendendo-se, por isso, que o Poeta, mais tarde, cônscio da sua dignidade de Artista, tivesse enjeitado as que havia dado ao prelo, deixando-as no esquecimento, ao compilar as Primaveras Românticas (1872), e inutilizasse as que conservava inéditas.
Esteticamente têm, quando muito, a amarujem agradável das primícias temporãs; psicologicamente, porém, possuem o destacado préstimo de assinalarem a zona do seu espírito em que a razão se universalizou e, porventura, depurou com a inquietude das dúvidas e com as convicções, algo frágeis e transitórias, de novas crenças. Sob este aspeto são até indispensáveis à crítica, como o são todas as prosas juvenis, por mais insignificantes que pareçam, pelo ponto de partida que estabelecem, tanto mais que patenteiam com sinceridade a estrutura íntima da sensibilidade do Poeta e a alvorada de alguns sentimentos e de algumas ideias que com vária constância o acompanharão através da existência. Estão, porventura, neste caso, a conceção heroica da fidelidade ao ideal e a intuição prospetiva e progressista da Vida, sem as quais a ética e a ação militante do socialista e do político, que brotam germinalmente em 1859 na Senda do Calvário, não teriam sido possíveis; e a tendência para a modelação plástica do espiritual e para a transfiguração do circundante, características acentuadas dos Sonetos, revelam-se já em A Pirâmide do Deserto (1859), que dir-se-ia sugerida pela famosa proclamação de Napoleão nas vésperas da batalha das Pirâmides, e em beira-mar (1860), cujo ambiente parece a transfiguração subjetiva do cair da tarde visto da penedia do Forte de Santa Catarina, na Figueira da Foz, onde a poesia foi escrita.
Esta fase dilucular, indecisa, de ingénuo lirismo sem ideias nem tonicidade, dissipou-se em 1862-63 com a luz quente de novos temas e de novos sentimentos que, subindo em altitude, irão esplender em 1865 nas Odes Modernas, cujo título e conceção, pelo menos, parece terem--lhe acudido em 1863. “O facto importante da minha vida durante aqueles anos (1856 a 1864), e provavelmente o mais decisivo dela, confessou a Wilhelm Stork, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança arrancada do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição.
“Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a Natureza, o acordar das paixões amorosas próprias da primeira mocidade, a turbulência e a petulância, os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa--vontade, mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das qualidades e defeitos com que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia”.
Antero declara neste passo capital da sua autobiografia que se lhe varrera “num instante” a educação católica e tradicional, mas a explicação crítica, assim como não compreende a explosão de crises sociais -sem antecedentes nem motivações, também não admite, salvo em contadas hipóteses, as mutações subitâneas e radicais da consciência.
Psicologicamente, a juventude é a quadra da vida em que o espírito descobre a existência dos seres ideais que são os valores e se acomoda com mais ou menos coerência e decisão ao ritmo que lhes é próprio. Viver para Deus ou para um Ideal humano, para a Arte ou para a Ciência, para o próximo ou para si-mesmo, implica a descoberta e a preferência de uma hierarquia de valores, assim como a acomodação do ritmo vital ao condicionalismo inerente à essência do valor, ou constelação de valores afins, a que se deu, ou reconheceupreferência. Ora, se a acomodação espiritual, paralela à cristalização do valor, quase nunca é brusca, a descoberta do valor é-o quase sempre. Normalmente, está ligada a comoções súbitas e profundamente sentidas, que abalam o ser íntimo e estável da personalidade. Quando isso se verifica —, um desgosto dilacerante, a página reveladora de um livro, a palavra convincente de um mestre, o sortilégio de uma obra de arte, o exemplo arrebatador de uma ação — pode falar-se de uma crise interior e, às vezes, de uma transformação psicológica, graças às quais se estancaram algumas correntes de vida e se abriram sulcos de novas correntes.
Ser novo significa então ser diferente do que se era, e para se ser diferente é necessário uma comoção espiritual em que na consciência se cave um fosso entre a existência de algo como desvalioso e a existência de algo como valioso. Renascença e conversão, são termos próprios destes sismos psicológicos, nos quais a vivência profunda do valor recém-descoberto se acompanha de um novo sentido da existência e às vezes até de um novo perfil espiritual. Se o valor descoberto é o valor do numinoso e da santidade e se a descoberta se acompanha da vivência do sobrenatural, dá-se a conversão religiosa, mas o sismo psicológico pode também verificar-se no puro terreno do natural e projetar sobre a totalidade da existência uma relação de interdependência tal que signifique a desdivinização.
Foi o que se verificou em Antero. Psicologicamente, a desilusão e a descrença surgiram como que instantâneas e explosivas, e o abandono das crenças em que fora educado acompanhou-se como que da vivência de uma conversão, pelo ardor de apostolado de que foi seguida a descoberta dos novos valores e das novas ideias. A sua mente apercebeu-se de novos horizontes, a sua capacidade de homem de ação exaltou-se e afirmou-se sem desfalecimentos, o rendimento do seu trabalho intelectual alcançou um volume e uma altura não atingidos por nenhum outro estudante e que constituiu a admiração dos contemporâneos: Eça de Queirós, Faria e Maia, Anselmo de Andrade, Lobo de Moura, etc., etc.