Joaquim de Carvalho, crítico literário e historiador da ciência, por José V. de Pina Martins

De acordo com o previsto no plano estabelecido para a edição da Obra Completa de Joaquim de Carvalho, este volume V é integrado pelos estudos de história e de crítica literárias e pelos de história da Ciência. A formação de Joaquim de Carvalho não foi propriamente a de um filólogo nem a de um professor de Literatura; não foi tão pouco a de um cientista nem a de um historiador de ciências exatas ou naturais. Historiador do pensamento decerto, pela sua preparação curricular na Faculdade de Letras, e historiador das instituições também graças ao seu curso de Direito, estava especialmente vocacionado para a reflexão crítico-filosófica e para o estudo histórico-institucional. Mas a sua grande curiosidade intelectual não o afastava, antes pelo contrário, da investigação dos fenómenos literários e da história da Ciência, para os quais um conhecimento sólido da Filosofia o predispunha, graças à familiaridade com os mestres do pensamento que amava, de Platão a Galileu e Espinosa, de Descartes e Leibniz a Husserl. Ocorria ainda que a sua fina sensibilidade estética — que bem revelou no seu estilo equilibrado e ático, numa escrita ao mesmo tempo austera e elegante— o movia à leitura dos autores mais voltados para o Universo do Espírito, tendo assim especialmente privilegiado poetas como Antero de Quental, atento à problemática do ser e do existir, e como Teixeira de Pascoais, voltado para o entendimento do homem e do mundo na mesma exegese do mistério essencial da vida. Joaquim de Carvalho, por isso mesmo, não podia alhear-se nem dos estudos literários nem dos estudos científicos. Este volume V da sua Obra Completa arquiva justamente os escritos que nos legou, referentes a estes dois campos do conhecimento humano, que ele soube harmonizar no mesmo ato de simpatia e de pesquisa ou reflexão crítica.

1. A leitura dos escritos que formam a primeira parte é evidentemente mais fácil, pois a abordagem dos problemas de história da Ciência pressupõe uma preparação mais técnica e especializada. Esta é, porém, a primeira, mais rápida impressão que se colhe de um contato imediato. De facto, através da ligeireza que pode suscitar a análise literária, surge não raro o convite severo do pensador a que o acompanhemos numa leitura essencial; enquanto, nas glosas e apostilas rigorosas às lições matemáticas e astronómicas de Pedro Nunes, se evidencia sempre a clareza irradiante de um espírito aberto que nunca esquece as normas cartesianas do método. Os escólios da segunda parte poderão ler-se com mais dificuldade, mas são igualmente acessíveis. Comecemos, porém, este breve itinerário pelos escritos da primeira parte, dispostos naturalmente pela ordem cronológica do objeto.

“Camões e a consciência nacional” é uma breve nota reflexiva em que se propõe uma interpretação de Os Lusíadas em termos filosóficos, como Giambattista Vico fizera para Homero em relação à Grécia e para Dante como símbolo do génio itálico. Joaquim de Carvalho sublinha mesmo que “a inspiração camoniana brota da autenticidade da história nacional. Por isso Camões não é a réplica portuguesa de Virgílio, Ariosto e Tasso”. A epopeia é apenas apresentada como “um poema da ação e da vontade, das empresas e realizações coletivas em que o herói, sua incarnação, é um momento na sequência dos acontecimentos. Daí a unidade do poema cujo centro são os feitos dos Portugueses”.

Na lógica de uma tal leitura, implicando a tensão das vontades ao serviço de finalidades comunitárias, compreende-se que Joaquim de Carvalho acentue especialmente o valor ético que a ação desperta, ligada ao amor patriae.

É esta uma página importante para definir a posição moral do investigador em relação aos valores nacionais consubstanciados na poesia camoniana. O pensador não quis identificar o génio do poeta como personificação da vocação histórica de um povo, receando que uma tal interpretação pudesse entender-se como reforço, na retórica política que a filosofia do Estado então na moda exaltava desmesuradamente, da exploração do pathos da Cruz e do Império. Como quer que seja, trata-se de uma lição de patriotismo sadio e de severidade interpretativa, mesmo que o pensador tenha sido mais profundo nos seus estudos sobre as leituras filosóficas de Camões.

O escrito sobre “Frei Heitor Pinto, Frei Amador Arrais e Frei Tomé de Jesus” foi inserto na História da Literatura Portuguesa Ilustrada e não podia, por isso mesmo, deixar de revestir um didatismo estrutural visível. Longe, porém, de prejudicá-lo, esta orientação confere-lhe qualidades de clareza e de ordem na disposição temática, assim como agilidade, o que converte o seu ritmo compositivo em estímulo literário a que o leitor se submete com prazer. Iniciada a leitura, o crescendo de interesse impõe-se até ao fim, mesmo quando a reflexão não suscita uma adesão plena ou uma concordância total. Joaquim de Carvalho vê, com efeito, a fé religiosa de Quinhentos numa exegese unitária e que se funda numa conceção dos fins supremos do Estado como assertor do Império, absorvendo, na realização dos seus fins últimos, a ação concertada dos homens.

 “O sentimento de uma missão apologética da grei” explica o surgir de uma literatura religiosa que não pode deixar de estar marcada pela consciência nacional do espírito de cruzada, mais do que de missão. Este espiritualismo, coincidente com um nacionalismo imperial, teria percorrido, na palavra literária, todo o século XVI. Poder-se-á não estar de acordo porque, como hoje sabemos, o Concílio de Trento estabeleceu uma fronteira entre dois conceitos de religio que se podem documentar na literatura de antes e na de depois; mas o mestre de Coimbra é um tão hábil expositor de conceitos, um tão perfeito argumentador das suas razões que, mesmo quando não provoca a concordância do seu leitor, suscita a admiração intelectual. Onde, porém, o espírito arguto dilucida e esclarece é na explicação convincente de que não devemos considerar nem mística nem ascética esta literatura religiosa. O próprio Frei Tomé de Jesus não nos transmite “o eco de uma vivência de êxtase ou visão de Deus”. Estes autores são, fundamentalmente, segundo Joaquim de Carvalho, nas suas obras religiosas, escritores morais e espirituais.

Pelo que diz respeito a Frei Heitor Pinto, o investigador de Coimbra expõe exemplarmente as vicissitudes do seu confronto com a Universidade de Salamanca, salientando a sua modernidade bíblica, em oposição aos que desejavam que ele se encontrasse mais voltado para a Escolástica. Afirma, nesse contexto, não compreender a posição de Frei Luís de León, “intelectualmente inexplicável”. A posição dos dois biblistas é semelhante na modernidade e na sensibilidade aos novos métodos hermenêuticos recomendados pelo Humanismo e parece, portanto, que Frei Luís de León deveria ter apoiado Frei Heitor Pinto.

Filipe II, porém, dando força aos estudantes e por isso mesmo à sua proposta de promoção do candidato português, feria frontalmente a independência da Universidade salmantina, e isso é que Frei Luís de León, membro do seu claustro, não podia aceitar.

Joaquim de Carvalho considera Frei Heitor Pinto como “límpido prosador”, mas sustenta que os seus diálogos nada têm de platónicos, ao contrário do que pensava o seu próprio autor. É verdade que não raro o diálogo se converte em monólogo, mas onde o moralista é sensível ao influxo platónico é no seu conceito do mundo das ideias e das formas. “Um moralista impregnado de ascese”, assim o define lapidarmente Joaquim de Carvalho. Mas Frei Heitor Pinto é também um filósofo da consciência dolorosa do tempo breve e do devir para a morte. Sublinhando que tudo, na Imagem da Vida Cristã, está subordinado eticamente aos fins supremos, religiosos, o pensador demonstra ter compreendido melhor a obra do frade jerónimo do que os historiadores da literatura que o precederam.


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