Joaquim de Carvalho, crítico literário e historiador da ciência, por José V. de Pina Martins

A análise da obra literária dos outros dois moralistas, Frei Amador Arrais e Frei Tomé de Jesus, é igualmente exata. Nem sequer passou despercebido à sua lucidez o carácter um tudo-nada intolerante que levou o primeiro a formular sobre Erasmo um juízo injusto e sectário. Assim como evidenciou com grande acerto que, com o segundo, se passa “da erudição e do moralismo para o puro sentimento religioso”: vítima do seu patriotismo, o autor de Os Trabalhos de Jesus mereceu ao professor da Universidade de Coimbra uma profunda simpatia, o que o não impede, porém, de reconhecer que, na sua obra extraordinária, há uma total ausência de dialética discursiva.

Destes três grandes escritores espirituais, se a sua maior simpatia vai para o último, a sua maior admiração intelectual é consagrada ao primeiro. De facto, Frei Heitor Pinto está acima, mesmo muito acima dos outros dois, pelo estilo, pelas ideias, pela ciência, pela abertura intelectual.

O estudo sobre “Uriel da Costa” reveste o carácter de uma importante recensão. Se Joaquim de Carvalho se tivesse proposto ir mais além, ter-nos-ia oferecido, com a sua penetrante inteligência crítica e a sua subtil indagação filosófica, um estudo profundo de relacionação intelectual do judeu português com o pensamento de Espinosa, - que tanto admirava, e conhecia como ninguém. Explica-se a alusão ao “vitupério com que Israel recorda e recordará o Venturoso da história pátria, como o Tito dos tempos modernos”, mas talvez pudesse observar-se que esse opróbrio se estende igualmente ao reinado de D. João II, perseguidor também dos Judeus, e sem a desculpa da pressão que sobre D. Manuel exerceram os reis católicos.

Joaquim de Carvalho demonstra mais uma vez estar, neste breve escrito, de posse da informação mais moderna que alia à mais lúcida reflexão, em estilo tão corrente como elegante. Interessante a explicação da tragédia do livre-pensador pelos exemplos antigos dos Estoicos. Mas esta primeira parte é porventura mais importante, ainda, pelos estudos que focam a poesia dos séculos XIX e XX do que pelos que acabamos de referenciar, de uma época mais afastada.

2. Antero de Quental foi, para Joaquim de Carvalho, um dos temas favoritos da sua reflexão crítico-literária e poético-filosófica. Já em volumes precedentes se incluíram contributos, entre os mais importantes, focando a evolução espiritual do grande poeta e o reflexo, na sua obra, do pensamento de grandes filósofos germânicos que ele conheceu e a cujo magistério foi sensível.

Os quatro estudos de circunstância neste volume reunidos são mais literários do que os precedentes, razão por que não foram incluídos junto aos outros, de estrutura mais acentuadamente filosófica ou histórico-cultural. O que não quer dizer que não tenham sido profundamente pensados: não temos dúvidas em sustentar que estão admiravelmente escritos porque são exatamente o fruto de uma reflexão amadurecida.

O primeiro, sintético e lapidar, recorda Antero “no aniversário do seu nascimento” e oferece-nos o gráfico da sua inquietação intelectual e do seu inconformismo. O segundo, subordinado ao título “Santo Antero”, debuxa os três momentos do itinerário do seu pensamento o do “homem novo” das Odes Modernas, confiante na razão e na consciência moral, o do “desesperado” expresso nos sonetos do ciclo 1873-1880, de um pessimismo marcado pela influência de Eduardo von Hartmann; e o do conformado ou do “sages”, em que a santidade lhe surge como valor supremo, identificando a filosofia com a religião. Trata-se de um escrito admirável sobre o filósofo da liberdade, redigido a pedido dos estudantes para recordar o nascimento do poeta.

No terceiro, aparecido como prefácio das Cartas Inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins, Joaquim de Carvalho faz um pouco a história da grande amizade virtude filosófica por excelência— que uniu o poeta ao historiador-ensaísta desde 1870 até 1891.

Discordaram, discutiram, dialogaram coincidindo no mesmo entusiasmo de altos ideais e de generosos projetos. O mestre de Coimbra sublinha a importância das cartas para um conhecimento mais exato do pensar de Antero, ao qual Oliveira Martins comunica certamente um maior concretismo, mais voltado que estava para a realidade histórica e social que o poeta entendia numa perspetiva mais discursiva e dialética.    

O quarto, enfim, publicado como Prefácio da segunda edição dos “Raios de Extinta Luz”, é um excurso porventura mais interessante pelo que deixa adivinhar do que por tudo o que explicita. As poesias juvenis dos Raios editadas por Teófilo Braga ressuscitam da morte que o autor lhes dera, oferecendo-nos uma imagem da mocidade do seu autor. Poderia pôr-se o problema de saber se um crítico como Teófilo tinha o direito de restituir vida ao que Antero decidira que devia morrer. Joaquim de Carvalho não alude a este problema. Mas refere-se às ideias generosas que exaltaram Antero de Quental quando se deixou arrebatar pelos escritos de Proudhon, de Michelet e de Hegel. Ensaio breve, decerto, mas que mais uma vez credita o mestre de Coimbra como o melhor conhecedor e intérprete da metafísica evolução — sinuosa— do pensamento anteriano.              

Se os dois breves excursos consagrados a Eugénio de Castro se propõem apenas celebrar o artesão admirável de versos modelarmente cinzelados e um poeta criador de Beleza numa língua tersa e castiça, os estudos dedicados a Teixeira de Pascoais oferecem já um interesse literário de maior valor. Porque, se Joaquim de Carvalho amava e admirava a obra de Eugénio de Castro como “monumento imorredoiro da nossa língua”, em virtude da sua grande “riqueza de inspiração”, não estava profundamente sintonizado com a sua filosofia, que era a de um horacianismo voltado para a mediania dourada e para o epicurismo elegante na vivência do instante fugitivo.

Teixeira de Pascoais talvez fosse menos artista da palavra, mas a sua problemática era mais universal e, portanto, mais suscetível de despertar o interesse de um pensador como Joaquim de Carvalho. Daí que este haja votado à obra do autor das Sombras uma atenção mais simpática e uma análise mais densa e reflexiva. Os três estudos que lhe dedica são disto uma prova cabal.

O primeiro constitui tão-só a palavra comovida de um lapidar In memoriam para, em termos esculpidos, recordar o poeta que, pela sua originalidade, revelou “um mundo de intuições de incomparável significação metafísica, sem par na nossa língua”.

Tive a honra de publicar o segundo, “Reflexões sobre Teixeira de Pascoais”, lido na Academia das Ciências de Lisboa, no volume dos Arquivos do Centro Cultural Português de Paris, editado para homenagear Marcel Bataillon. Trata-se de um escrito modelar em que Joaquim de Carvalho coloca Teixeira de Pascoais no pedestal que lhe convém, ao lado de grandes espíritos da cultura portuguesa —Pedro Nunes, Garcia da Orta, Pedro da Fonseca, Herculano, Vieira: “O que Pedro Nunes significa para a mente que descreve com exatidão, Pedro da Fonseca para a mente que comenta, Herculano para a mente que reconstitui historicamente, Vieira para a mente que explora os recursos da palavra, Teixeira de Pascoais o significa para a mente que poetiza”. O poeta de Marânus foi escritor por ditame vital e espiritual: “Ninguém o igualou na virtualidade genética da palavra e da metáfora”; “foi até hoje o único poeta português no qual o pensamento filosófico se constitui simultaneamente com o poeta […]”. O saudosismo funda-se na última conexão da lembrança e da esperança. Trata-se, em derradeira análise, de uma fascinante pesquisa dos elementos essenciais que definem o génio e a evolução do pensar cósmico-poético de Teixeira de Pascoais.


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