Joaquim de Carvalho, crítico literário e historiador da ciência, por José V. de Pina Martins

Este carácter de atenção ao concreto para melhor definir o conhecimento crítico, superando o hedonismo das simples especulações teóricas consideradas como jogo dialético, explica a severidade com que o mestre de Coimbra julga a negatividade do simples entretenimento ensaístico como recusa do esforço por uma análise crítica ou conhecimento de rigor. “Escolher o ensaio como forma mentis e como género literário — escreve— é como que anunciar o propósito de discorrer com originalidade e com intenção de fazer pensar, mas equivale também a adotar um roteiro mental que quase sempre conduz a que a opinião ágil ocupe o lugar do juízo ponderado e que o pensamento se satisfaça com a delineação do esboceto. [...] O ensaio tem atrativos que seduzem mas tem também defeitos que o depreciam, derivados quase sempre do brilho da superficialidade e da satisfação do autodidata”. Palavras de uma lucidez certeira e de uma atualidade evidente. O ensaísmo que, praticado por estudiosos competentes e inteligentes pode ser um género literário inovador, é geralmente entre           nós uma forma de jornalismo que tematicamente se prestigia por uma tal ou qual dignidade especulativa mas que, quase sempre, é o documento objetivo de uma incapacidade congénita ou adquirida para a atividade disciplinada do espírito, criadora de ciência — portanto incapacidade para criar ciência. Era por isso que Joaquim de Carvalho pensava que o ensaísmo — a não ser em casos muito raros — não devia ter direito de cidadania na carreira universitária onde só deveria caber o espírito crítico com características de rigor e de ciência autêntica.             

Esta parte primeira, não obstante o seu aparente carácter fragmentário, é, portanto, importantíssima. A parte segunda do volume, formada por trabalhos exclusivamente centrados na História da Ciência, é igualmente importante.   

3. O pródromo da parte II é constituído pelo belíssimo discurso sobre “O ideal moderno da Ciência”. Como o próprio Joaquim de Carvalho reconhece, não se trata de história da Ciência mas apenas de uma reflexão histórica e crítica sobre o advento da Ciência em Portugal, depois de dois séculos em que, entre nós, se especulou more metaphysicorum, para repetir Pedro Mar galho, filósofo português do século XVI, imerecidamente esquecido. Justificava-se que a Academia das Ciências de Lisboa — que elegera o mestre de Coimbra para a cátedra de História da Ciência— o convidasse a inaugurar o seu Instituto de Altos Estudos. Joaquim de Carvalho pergunta-se socraticamente qual o ideal de Ciência que a Academia das Ciências de Lisboa anunciou em 1779, no próprio momento da sua fundação por parte de dois espíritos tão lúcidos e tão modernos como o Duque de Lafões e o Abade Correia da Serra.           

“O ideal da ciência moderna — escreve o douto professor coimbrão — não é estático e contemplativo; é ideal dinâmico, tenso para o futuro”. Por isso os sábios sentiram a necessidade de confrontar as suas pesquisas e a sua própria experiência em associações livres consagradas à livre investigação. Surgiram assim as Academias. Esta “nova forma de convivência”, inaugurada em inícios do século XVII pela Accademia del Lincei — tornada famosa pelo prestígio de Galileu— renasceu em França com a Academia das Ciências em 1658   e noutras instituições similares como a Sociedade de Ciências de Leibniz e a Sociedade Real de Londres. Foi preciso aguardar até 24 de Dezembro de 1779 para que “soasse a hora portuguesa”. Joaquim de Carvalho acaba por identificar os fins da Instituto de Altos Estudos com o programa que, no seu tempo, se impôs no Colégio das Artes. Porque Academia significa, em última análise, livre investigação no objetivo de renovação de um saber concreto, científico.  

Se o excurso se impõe como pródromo para a parte II deste volume, verifiquemos que a quase totalidade das contribuições que a integram têm como objeto o estudo da personalidade e da obra de Pedro Nunes. Foi a grande paixão intelectual do mestre de Coimbra. Mas oferecerá o autor do Tratado da Sphera o desenvolvimento crítico-científico do programa anunciado no próprio excurso, não obstante o exemplo recordado do Colégio das Artes? Pedro Nunes, como matemático, é decerto um grande sábio, mas em 1779 já toda a Europa aceitava a teoria heliocêntrica. No Tratado da Sphera, porém, livro publicado apenas seis anos antes do De reuolutionibus orbium caelestium de Copérnico, o nosso Pedro Nunes aceita a teoria ptolomaica. É verdade que Galileu vinha ainda longe e que, num passo de grande modernidade científica, o nosso insigne matemático reconhece o carácter científico das navegações portuguesas.     

É aliás neste endereço da especulação matemática voltado para as técnicas de navegação que nos cumpre entender a obra do grandíssimo matemático salaciense.              

Foi também com um propósito análogo — o de sublinhar a importância técnico-científica das navegações — que Joaquim de Carvalho levou a bom termo as suas anotações e escólios ao Tratado da Sphera, à Theórica do Sol e da Lua, à tradução do Livro Primeiro da Geometria de Ptolomeu e às próprias anotações de Pedro Nunes “neste primeyro livro de Ptolomeu”, em que demonstra mais uma vez a sua competência excecional de historiador e até de bibliógrafo da Ciência.             

Só quem não conhecesse Joaquim de Carvalho poderia admirar-se da mestria com que tratava com igual competência problemas de filosofia, de crítica literária, de história da Ciência e mesmo de bibliofilia.              

A esse respeito impõe-se como notável o capítulo relativo às Anotações ao “De crepusculis”, livro tido como um dos mais sólidos, no          plano científico, do grande matemático. Aliás, a edição de 1542 tem no rosto uma portada xilográfica que alcançou um grande êxito no século XVI, cuja origem italiana me foi dado demonstrar num dos meus estudos.

Joaquim de Carvalho disserta magistralmente, ainda, sobre as edições de 1572 e 1592: os nossos bibliógrafos de hoje terão muito que aprender com o domínio não só de conhecimento crítico mas também de saber bibliológico do grande estudioso.

Igualmente valiosas as Anotações ao “De erratis Orontii Finmi”, em que Pedro Nunes procura provar a leviandade do matemático francês. O qual, talvez por ser um dos primeiros lecteurs royaux no futuro Collège de France, se abalançou a tentar resolver problemas até então insolúveis. O mestre de Coimbra evidencia que se trata da única obra verdadeiramente polémica do insigne matemático e escrita apenas em obediência a um entranhado amor veritatis. Depois de uma descrição sábia das edições de 1546, 1571 e 1592, Joaquim de Carvalho explica as razões que levaram o grande matemático salaciense a sublinhar os erros do jactancioso astrónomo de além-Pirenéus.


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