Frei Heitor Pinto, Frei Amador Arrais, Frei Tomé de Jesus

Na produção literária do século XVI domina a bibliografia religiosa. E compreende-se. Os valores religiosos eram considerados valores vitalmente essenciais, não distinguindo os portugueses de Quinhentos a ética da religião e a “fé” do “império”, isto é, os fins últimos do indivíduo dos fins supremos do Estado. Daí, o sentimento de uma missão apologética da grei, que a conduziu à cruzada no interior contra marranos, evangelistas, tímidos inovadores e vagos críticos de textos, e à cruzada no exterior, para dilatação da fé.

É, uma atitude íntegra que percorre todo o século, embora se intensifique a partir do Concílio de Trento, e cuja fisionomia se desprende com nítido perfil do desenvolvimento e variedade da literatura religiosa, no sentido amplo do termo. Esta literatura, que nunca foi estudada no seu conjunto, nas correntes espirituais que a informaram e na coloração nacional dos temas, é constituída por traduções, pelas edições em castelhano de místicos espanhóis e por escritos originais. Todos estes escritos confluíam no mesmo curso; no entanto, de passagem, deve acentuar-se a importância de algumas traduções, pelo que incitaram e sugeriram na meditação ascética e mística e na análise da vida interior, além da influência no léxico, pela criação de um vocabulário psicológico e em parte filosófico, como as Instituciones (1551) e os Exercícios e meditação da vida e paixão de Jesus Cristo (trad. por Fr. Marcos de Lisboa, e três vezes editada durante o século), de Tauler, alguns tratados de São Boaventura, a Escala espiritual, de São João Clímaco (em castelhano, 1562) e os Exercícios espirituais e divinos, de Nicolau Eschio (1554). Pela profundidade dos estudos teológicos nas cátedras universitárias e nos colégios das ordens monásticas, pelas traduções e pela difusão da literatura mística espanhola, tanto em edições impressas em Portugal como em Espanha, a literatura religiosa portuguesa da segunda metade do século XVI dista profundamente da literatura da primeira metade, na riqueza da expressão, na variedade e complexidade dos temas, no dilatado do horizonte e no sentimento da vida interior. É de uso qualificar-se de mística esta literatura. Sê-lo-á na verdade? O termo mística, como o termo metafísica, de consumo corrente, oferece subtis dificuldades na sua definição. De um modo geral pode dizer-se que por mística se significa a tendência do espírito para a união íntima com um valor absoluto. No ponto de vista religioso, esse valor é Deus, e para o crente, designadamente católico, o misticismo, ou antes, o seu momento supremo, o êxtase, é um estado psicológico produzido pela graça divina.

O êxtase, como a comunicação ou visão em Deus, normalmente carecem da contemplação, isto é, da compreensão da grandeza divina acompanhada e seguida de um intenso movimento afetivo da alma para Deus; mas podem também realizar-se direta e imediatamente, isto é, sem pensamento discursivo ou movimentos preparatórios, por imediata graça de Deus. Há, assim, duas espécies de mística: a mística experimental, ou seja a descrição das experiências teopáticas, a introspeção do êxtase ou arroubo pessoal, e a mística doutrinal, ramo da teologia, a qual estuda a índole da contemplação e seus graus, e os preparatórios e modos do conhecimento místico.

A tradição teológica, tão dividida sobre as diferenças entre a ascética e a mística, coincide no entanto em reconhecer que a vida espiritual normalmente percorre três vias: a via purgativa, durante a qual a alma se despoja dos apetites e das paixões, purificando-se dos pecados; a via iluminativa, na qual se ilumina pela consideração dos bens eternos, tornando íntima a paixão e redenção de Cristo, e a via unitiva, cujo termo é a visão e união com Deus, fim derradeiro das criaturas.

À luz desta concisa propedêutica, a pergunta formulada tem, a nosso ver, uma resposta negativa.

Problema novo, por demais desajudado de investigações subsidiárias e da possibilidade de confronto de opiniões divergentes, a opinião em tão delicada matéria tem muito de hipotético e provisório, no estado atual dos estudos. Em todo o caso, julgamos impor-se a conclusão de que a nossa literatura religiosa quinhentista não deve qualificar-se de mística, mas de ascética, se por ascética entendermos a teoria e a prática da expurgação do espírito, por meio de exercícios, mortificações, orações e meditações, em ordem ao desprendimento dos afetos e prazeres terrenais.              

Na literatura quinhentista não encontrámos uma vivência do êxtase, próxima ou idêntica às descrições de Santa Teresa de Jesus ou de São João da Cruz, nem o recordar emocional ou discursivo do arroubo, oferecendo-nos em compensação, por vezes admiravelmente na expressão e na profundidade, a meditação dos graus e formas da vida purgativa, essencialmente ascética, e a exortação à resipiscência. A alma religiosa que mais intensamente e dramaticamente viveu o anseio místico foi, em nosso juízo, Frei Tomé de Jesus; mas este mesmo, se ultrapassou a via purgativa, elevando-se à meditação da via iluminativa, não logrou transmitir-nos o eco de uma vivência de êxtase ou visão de Deus. Por isso, pelo domínio dos temas ascéticos, ou se se quiser, de mística doutrinal, a literatura religiosa quinhentista, para evitar ambiguidades, afigura-se-nos dever ser qualificada de literatura ascética.       

É vasta, como dissemos, esta literatura, tanto em prosa, como em verso. Limitando-nos aos prosadores, são dignas de nota as obras de D. Gaspar de Leão, primeiro arcebispo de Goa, Compêndio espiritual da vida christã (Goa, 1561; Coimbra, 1600); Francisco de Sousa Tavares, Livro de Doutrina spiritual (Lisboa, 1564); Frei Bartolomeu dos Mártires, Catecismo ou doutrina christam e práticas spirituais (1566, várias vezes editada); Pedro de Santa Maria, Ordem e regimento de vida christã (Coimbra, 1555); Frei Álvaro de Torres, Dialogo espiritual. Colloquio de hum religioso com hum peregrino onde lhe ensina como se hade achar a Deus (Évora, 1579); Sebastião Toscano, Mystica Theologia (Lisboa, 1568); Gaspar de Torres, Desengano de perdidos, em diálogos (Goa, 1573); Fr. Nicolau Dias, Tratado da Paixam de Nosso Senhor Jesu Christo (Lisboa, 1580); Anónimo, Regras e cautelas do proveito espiritual (Lisboa, 1542); Fr. Marcos de Lisboa, pelas traduções e pelas Crónicas da ordem dos frades menores (1.a parte, 1557; 2.ª parte, 1562), tão injustamente esquecidas e que o nosso século deve reeditar; e do cónego D. Hilarião Brandão, a Voz do amado (Lisboa, 1579).              

Culminantes, porém, no aspeto literário, de há muito a crítica ergueu os nomes de Frei Heitor Pinto, do bispo Frei Amador Arrais e de Frei Tomé de Jesus.

Frei Heitor Pinto (1528-84?) nasceu na Covilhã, professando no mosteiro dos Jerónimos, em Belém, em 1543. Na sua biografia, aliás mal conhecida, destaca-se a pugna com Frei Luís de León, a qual parece ter exercido uma influência decisiva no curso da sua vida.

Em 1568, se não antes, aparece-nos Frei Heitor Pinto em Salamanca. À velha cidade universitária levou-o, porventura, a conveniência de cuidar da impressão dos In Ezechielem Prophetam Commentaria, que realmente imprimiu nesta cidade e neste ano; mas seduzia-o também a possibilidade de reger uma cátedra. A natureza dos seus estudos — além dos Commentaria in Ezechielem tinha publicado em Lyon, em 1561, os In Isaiam Prophetam Commentaria—, vinha ao encontro das necessidades da Faculdade Teológica de Salamanca. Gregório Gallo, catedrático de Sagrada Escritura, ou Bíblia, jubilara-se em 1560; porém era costume, senão lei, conservar a cátedra, em nome do proprietário, até à sua morte, provendo-se interinamente, por períodos de quatro anos, pelo processo das oposições. Neste ano de 1568 deveriam, portanto, ter lugar os concursos à interinidade da cátedra. A legítima ambição de Frei Heitor Pinto era também a da sua Ordem, que pela pena de Frei Rodrigo Hiespes, afirma que “inter (prophetarum enarratores) nostra hac tempestate principem locum tenet reverendus pater Hector Pintus, patria Lusitanus”. Heitor Pinto, enquanto se não abria concurso, ia aplicando as horas livres em conferências, vendo formar-se em torno do seu nome uma aura de prestígio. Os estudantes pareciam ser os mais entusiastas, e dentre eles é natural que se distinguissem os portugueses, cujo número então ainda era apreciável em Salamanca, a despeito dos esforços nacionalizadores da Universidade de Coimbra, alfim triunfantes.


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