Frei Heitor Pinto, Frei Amador Arrais, Frei Tomé de Jesus

O límpido prosador iludira-se: os seus diálogos nada têm de platónico nem nos temas, nem no ritmo, que, por vezes, quase se desfigura em monólogo. Confessava, porém, a verdade quando dizia abonar-se nas autoridades, isto é, revolver “os livros... com grandes trabalhos e vigilias”, porque o que se desprende do desenrolar dos diálogos é uma vastíssima erudição. O seu espírito assimilou, como talvez nenhum outro contemporâneo luso, as culturas israelita e pagã, superadas e integradas ética e intelectualmente pela cultura e pelos valores cristãos.

A vasta ciência das letras divinas e humanas e a tendência assimiladora são, em nosso juízo, as qualidades dominantes do seu espírito.

Um dos mais raros livros de Fr. Heitor Pinto. A 2.a edição dos Comentarios a Daniel.

(Exemplar da Biblioteca da Universidade de Coimbra)

Este, jamais se elevou à contemplação, não ultrapassando a posição do moralista e erudito, cujo pensamento vive preso à recordação do pensar alheio, sempre à margem de livros, e que apenas se solta no que o autor chama as comparações. Estas comparações são, por vezes, de uma rara beleza literária, de terna moralidade e de delicado sentimento da natureza (“ribeiras deleitosas, nem árvores sombrias, mas grandes penedos mais tristes e melancolizados que alegres e graciosos ao parecer da vista”), provando, como diz Aubrey Bell, a “excecional capacidade que tem a língua portuguesa para combinar a suavidade com o vigor”. Porém, não nos transmitem fortes emoções, o primado da vontade ou do sentimento sobre o pensar discursivo, mas, pelo contrário, uma posição ética, onde a seleção dos fins supremos, religiosos como é óbvio, se realiza por operações do entendimento. “He tam piqueno, disse o Português, o pavio de nossa vida, e vayse consumindo com tanta ligeyreza a cera da idade, que nos convém antes que se acabe a candea, trabalhar neste piqueno tempo com muyta pressa e cuydado por alcançarmos esta sabedoria, per cujo meo alcancemos a eterna bem-aventurança... Os que vierem a alcançar a verdadeyra sabedoria, não devem tanto attentar pera o que d'ella tem acquirido, como pera o que lhe compre acquirir: porque natural he de prudentes, não olhar tanto pera o que sabem, como pera o que lhe falta saber. E pera se isto alcançar he necessario vigiar, e trabalhar, e orar, e padecer tribulações e angustias. Mas pera nellas não desmayarmos, nem enfraquecermos, comprenos cuydar na grandeza da divina misericordia: e lembrarmonos das merces que de Deos recebem, os que a elle se encommendam”. Esta página dá-nos o tema permanente dos diálogos, revelando-nos ao mesmo tempo a essência da sua atitude, que é a de um moralista impregnado de ascese.

É uma atitude idêntica, menos ingénua e por isso menos sedutora literariamente, mais presa ainda à realidade, apesar da suspicácia com que a mira, a que o bispo de Portalegre, Frei Amador Arrais, nos oferece nos Diálogos (1.a ed., 1589; 2.a ed., revista e emendada, 1604).       

Como Heitor Pinto, Amador Arrais não teve ainda o seu biógrafo.         

Discutíveis o lugar (Beja? Faro?) e o ano (1530?) do seu nascimento. Sabe-se que era filho de Simão Arrais, entrou como noviço na Ordem dos carmelitas calçados em 24 de Janeiro de 1545, professando em 31 de Janeiro de 1546, e se doutorou em teologia, na Universidade de Coimbra, à qual alude, por vezes, na sua obra.

Foi coadjutor do infante D. Henrique, quando arcebispo de Évora, o qual o nomeou, em 1578, bispo de Tripoli, alcançando a mitra de Portalegre, por nomeação de Filipe I, em 30 de Outubro de 1581.

Do seu arcebispado legou-nos Diogo Pereira Soto Maior, no Tratado da cidade de Portalegre (1619), curiosas notícias e algumas notas reveladoras do seu carácter esmoler, mas hábil, de homem que sabia manejar as “peitas e dádivas”.

Em 1596 resignou a sé de Portalegre, por uma demanda intentada pelo cabido contra ele, acerca dos rendimentos de uma igreja, recolhendo-se ao Colégio do Carmo em Coimbra, cujo edifício concluiu, e onde faleceu em 1 de Agosto de 1600. No juízo dos contemporâneos, foi grande pregador, a ponto de D. Sebastião, diz-se, o querer ouvir, e tanto lhe agradou, que o nomeou seu pregador; porém, para a posteridade literária, o que salvou o seu nome foi a miscelânea histórica, ética e religiosa a que pôs o nome de Diálogos. Como o título indica, a obra consta de diálogos, entre dois interlocutores. Antíoco enfermo, e Apolónio médico, e alguns amigos, os quais discorrem acerca das queixas dos enfermos e curas dos médicos; da gente judaica; da glória e triunfo dos lusitanos; das condições do bom príncipe; da consolação para a hora da morte; da paciência e fortaleza cristãs; do testamento cristão e da invocação de Nossa Senhora. O simples enunciado da matéria dos diálogos revela-nos, a par de temas morais e religiosos, assuntos históricos, como o resumo da história de Portugal e da diáspora israelita, e esta miscelânea é indício claro de uma saturação erudita, de um pensamento de glosador, que o afastam, ainda mais que Heitor Pinto, da vivência mística. O fervor religioso, por vezes intolerante, como no diálogo Da gente judaica, por vezes compreensivamente humano, como no protesto contra a escravatura, é sem dúvida intenso, como o fora em Heitor Pinto, embora não atingisse o plano relativamente elevado a que este chegou. De Frei Heitor Pinto suspeitaram os seus irmãos em religião que se apropriara de diálogos compostos por Frei Álvaro de Torres, segundo o informe de Barbosa Machado. Este problema, que nunca foi examinado, e que não examinámos pela absoluta raridade do Diálogo ou Colóquio espiritual do modo de achar a Deus, mandado imprimir pelo primeiro arcebispo de Goa, D. Gaspar de Leão, em 1578, e por ausência de outras fontes, formula-se também em relação a Amador Arrais, não por suspeita, mas por espontânea confissão. No “Prólogo ao leitor”, Amador Arrais declara que “a estes diálogos deu principio o Doutor Hieronimo Arraiz meu irmão; mas com sua morte nem lhe pode dar cabo, nem livrar o que avia principiado. Eu, por me parecer que seria obra útil e aprazível, se se prosseguisse, e perfeiçoasse, fiz nella emprego do estudo, que para outro livro tinha dirigido. Não na compus em a lingua latina, mas na nossa Portuguesa, porque minha tenção foi, e he aproveitar a todos: e polo mesmo respeito cortei por muitas cousas que faziam muito mayor este volume. Não sei o que aproveitarei, mas o intento, e desejos são aproveitar muito”. Até onde foi a participação original do bispo Arrais? Fez a versão do latim para o português, como parece sugerir? Não o sabemos, nem talvez o possamos nunca saber; entretanto o que de líquido se colhe é que lhe pertence a lima da prosa e o apuramento do gosto literário nitidamente consciente. Breve no estilo, preciso e singelo, não o contaminou a retórica, e é este equilíbrio que ressalta e há muito a crítica tradicional louvou, julgando ser “o melhor exemplar do estilo médio ou temperado”.

Este equilíbrio de prosa é o espelho do equilíbrio de sentimentos. Nem exaltações, nem extremos vitupérios, porque “não convém Antiocho, que os refrescos, e refrigérios de cá, sejam de muita dura, porque nos não descuidemos, e entreguemos ao repouso, e descanso no meo da viagem, antes de chegarmos ao cais, e porto seguro da bem-aventurança”. (Das queixas dos enfermos).


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