Frei Heitor Pinto, Frei Amador Arrais, Frei Tomé de Jesus

Com Frei Tomé de Jesus a erudição, a resipiscência e o moralismo cedem o passo ao puro sentimento religioso. Nem intelectualismo, nem glosa, nem parénese das vantagens da religião: puro amor de Cristo e ardente desejo de reviver os “trabalhos de Jesus”, tão puro e tão ardente que a cristologia se dissolve na meditação e na contemplação do Ecce Homo.               

“Cuidei no começo, fazer uma muito breve recopilação dos trabalhos do Senhor”, declara na Carta á Nação Portuguesa; “e confesso a sua bondade, que nem sabia por onde começasse, nem como continuasse, nem em que acabasse. Mas indo escrevendo, e levado não de meu cabedal, senão da sua mão, costumada a guiar as ovelhas perdidas, achei-me no cabo com dous volumes feitos, a história de seus trabalhos, considerações, e exercícios, e doutrinas, que sobre eles, ele, sem eu o ouvir, me ensinou. As quais confesso a sua misericórdia, que nunca, nem antes, nem depois, nem então soube sentir da maneira que mo ele fazia escrever. E como isto foi sem nenhuma ajuda de livros, e sem nenhum uso de escrever causas desta matéria; ainda que eu não queria, ficam todas as faltas, e imperfeições desta obra minhas, e o que nestes livros pode aproveitar, só fazenda sua. Ninguém pode ter isto por engenho, nem habilidade, nem experiência de causas tão divinas, senão só por efeito daquela soberana fonte, a qual assi como corre por riquíssimos, e santíssimos canos, assi acertou de passar uma partesinha por esta vasilha desaproveitada que não deixa de ficar de barro velho, mostrando por ela a divina água sua fermosura”.

Esta confidência, psicologicamente valiosa e sem dúvida sincera, não dispensa de forma alguma o delicado problema das fontes místico-literárias de Tomé de Jesus. Com ele se entra numa terra incógnita e sem prefigurar os resultados definitivos dessa investigação nunca tentada e aqui não tentanda, pensamos que, como Etchegoyen demonstrou em relação a Santa Teresa de Jesus, as influências ideológicas ressaltarão, como reminiscências de prístinas leituras, designadamente Santo Agostinho, e porventura Tauler e Frei Francisco de Osuna (Abecedário espiritual). Como este tema, a biografia de Frei Tomé de Jesus não tem sido objeto de estudos recentes. A fonte primacial continua a ser a Vida do venerável Padre Fr. Tomé de Jesus, composta pelo arcebispo de Braga, D. Frei Aleixo de Meneses, a qual tem servido como de prefácio a algumas edições dos Trabalhos de Jesus. Por ela, e por outras vias, sabemos que seus pais foram Fernão Álvares de Andrade, tesoureiro de D. João III, e Isabel de Paiva, tendo nascido em Lisboa, em 1529. O nascimento tornara-o já ilustre; porém, mais que a nobreza do sangue, singularizou a sua família a cultura do espírito. Basta dizer que foram seus irmãos Diogo de Paiva de Andrade, pregador célebre, teólogo famoso e um dos representantes de Portugal no Concílio de Trento; Francisco de Andrada, o cronista-mor de D. João III, cuja Crónica escreveu; Frei Cosme da Presentação, falecido em Bolonha, teólogo e filósofo; Violante, esposa do 2.° conde de Linhares, e seu sobrinho, o autor do Casamento Perfeito (1636), Diogo Paiva de Andrade, filho do cronista. Menino ainda, aos 10 anos, foi confiada a sua educação ao agostinho Frei Luís de Montoia, o qual o levou para Coimbra, para o Colégio de Nossa Senhora da Graça, um dos numerosos colégios da urbe universitária. Durante esta escolaridade, esteve em risco de morrer afogado no Mondego, “e o menino Tomé, reconhecendo a mercê que Deus lhe havia feito em dar-lhe a vida milagrosamente, determinou gastá-la em serviço do mesmo Senhor” (A. Meneses). Professou em Lisboa, no Convento de Nossa Senhora da Graça, da Ordem agustiniana, em 1544, regressando de novo a Coimbra para estudar artes e teologia. Ignora-se a sua formação científica, mas o que se depreende da sua vida de então, como aliás do decurso de toda ela, é uma decidida vocação religiosa. Frei Luís de M9ntoia cometeu-lhe a guia e direção dos noviços do convento de Lisboa, e tão devotadamente se consagrou Frei Tomé de Jesus a este serviço que escreveu o livro Costumes de noviciado, que foi durante muitos anos seguido na sua ordem, e cujo original se perdeu no final do século XVI ou princípios do século XVII. Escrevendo neste século, o arcebispo de Braga D. Aleixo de Meneses (t 1617) dizia que “o que deles ficou em memória é por onde hoje se governam, que vem a ser o mesmo, se bem no livro estavam com melhor ordem”. O seu afã religioso não se satisfez com a direção de noviços, a qual sem dúvida concorreu para lhe dilatar a experiência da vida religiosa, aguçando e depurando o sentido da vida interior. Pensou (1574) no estabelecimento de uma congregação de recoletos da sua ordem, e este pensamento, que o transportaria para o domínio da ação, embora encontrasse o apoio de Frei Luís de Montoia e do cardeal-infante D. Henrique, só mais tarde teve efetivação em Espanha pelo esforço de Frei Luís de León, que parece ter conhecido o projeto do seu irmão de hábito.

Este projeto valeu-lhe intrigas e inimizades, e com estas “tiveram origem alguns trabalhos, que ele sofria com muita paciência e silêncio, ocupando-se sempre no serviço de Deus e da Religião” (A. Meneses). Talvez para lhes fugir, retirou-se do mosteiro de Lisboa para o Convento de Penafirme, no termo de Torres Vedras, onde levava uma vida de recolhimento e meditação, interrompida apenas pela pregação nas aldeias vizinhas.

Foi por esta época, porventura, que ele escreveu a Vida do Venerável P. Luís de Montoya, cujo manuscrito se perdeu e em grande parte apareceu na biografia que publicou em Lisboa (1588). Frei Jerónimo Román, redigiu a quarta parte da Vida de Cristo, que Frei Luís de Montoia deixara incompleta, e teve trato espiritual, senão epistolar, com Frei Luís de Granada. Durante algum tempo foi prior do Convento de Penafirme e visitador da Ordem, mas em 1578 D. Sebastião escolheu-o para o acompanhar na jornada de África. Na batalha de Alcácer-Quibir, quando cuidava dos feridos e exortava, com um crucifixo, os combatentes a “que pusessem o intento daquela batalha na honra e glória de Cristo Nosso Senhor e dilatação da sua Santa fé católica”, foi ferido de uma lançada e, cativo, transportado para Mequinez.

A vida anterior de Frei Tomé de Jesus tinha sido, mais ou menos, a vida de muitos homens, mas com o cativeiro começou verdadeiramente a sua glória, pela constância de sentimentos, pelo espírito de sacrifício, pela intrepidez da religiosidade, pelo ardente patriotismo e pela obra literária.

A sua prisão e as algemas representavam para os maometanos o triunfo do Alcorão sobre os Evangelhos. Um marabu ou ermitão, sabendo-o cativo, logrou comprá-lo como escravo “e comprado que o teve, o levou a seu retiro, onde lhe fazia mui bom tratamento, persuadindo-lhe com estes favores a que deixasse a lei de Cristo e se passasse à de Mafoma, prometendo-lhe se o fizesse que lhe alcançaria d’EI-Rei grandes honras e riquezas, e que ele com sua autoridade o poria na maior opinião entre a gente que se pudesse cuidar. Aproveitava-se o santo religioso Frei Tomé destas práticas e favores, que o marabuto lhe fazia para persuadi-lo ao contrário, e que deixasse a lei de Mafoma, que toda era cheia de falsidades e erros, e se passasse à de Cristo nosso Senhor, que só era a verdadeira, e em que só havia salvação” (A. Meneses). Convencido o marabu da inutilidade desta tática, recorreu então à violência, carregando-o de ferros, encarcerando-o despido e dando-lhe “menos de comer e mais de açoutes”.


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