Frei Heitor Pinto, Frei Amador Arrais, Frei Tomé de Jesus

Com indomável firmeza suportou todas estas provações, que dia a dia refinavam, até que a notícia delas chegou ao conhecimento de D. Francisco da Costa, que em Marrocos, como embaixador do cardeal D. Henrique, estava tratando do resgate dos cativos. Conseguiu este libertá-lo da prisão do marabu, a título de escravo do Xerife, sendo encontrado “tão fraco e desfalecido, que foi necessário regalá-lo alguns dias em casa de mercadores, que ali havia, antes que o levassem a Marrocos” (A. Meneses), onde se encontrava o embaixador de Portugal. Quis este hospedá-lo em sua casa, assim como Pedro Vanegas, embaixador espanhol, porém Frei Tomé de Jesus recusou, preferindo o cárcere em que estavam os cativos portugueses e de outras nações. Companheiro, médico e assistente moral dos cativos, cujas necessidades antepôs sempre às suas comodidades, tornou-se ao mesmo tempo um missionário, procurando revigorar a fé dos vacilantes e a conversão dos incrédulos e sectários de outras religiões.

Repudiando o resgate, promovido pelos irmãos, veio a extinguir-se no cárcere, em 17 de Abril de 1582, a sua vida admirável de apostolado, de resignação e de bondade. Durante o cativeiro escreveu os Trabalhos de Jesus. Obra de emoção, desajudado de livros, mas rico da mais profunda experiência religiosa de uma vida inteira, que as provações em Marrocos sublimaram, nenhum coração humano pode ficar indiferente perante as vivências emocionais deste espírito. Com cruel ironia, por demais incompreensível em quem possui em alto grau o sentido agónico da vida, disse Miguel de Unamuno que “este buen fraile portugués tenia una fertilissima imaginación para inventar refinamientos del padecer. Su libro, todo efusiones líricas y encendidas jaculatórias, es un largo himno — muchas veces difuso y muchas enfático y de un énfasis más español que portugués — al dolor” (Por tierras de Portugal y de España).

O sentido místico fora para Tomé de Jesus não apenas o termo de uma vida ascética como, sobretudo, uma posição coerente com as provações do cativeiro. Nem ênfase narcisista, nem prazer literário, nem fuga para o consolo da imaginação, porque revivendo emocionalmente os “trabalhos de Jesus” numa posição “obediencial”, isto é, de “instrumento de Deus”, Frei Tomé dissolvia na contemplação espiritual do Ecce Homo as suas próprias dores. As condições em que esta obra foi escrita não se compadeciam com a composição calma: impunham, pelo contrário, uma exaltação da dor, e a melodia permanente da suave e doce resignação de Jesus.

Na comovida e comovente Carta dirigida à Nação Portuguesa no tempo daquelas grandes tribulações da jornada de Africa (8 de Novembro de 1581), que é como que a dedicatória dos Trabalhos de Jesus, confessou Frei Tomé que “os pobres cativos..., só com os olhos no Céu..., passam mais sustentados pela divina graça, que por humanas forças. E como a fraqueza humana é muita, há entre nós, por nossos pecados, perigos de grandes quedas espirituais, em que muitos resvalam; e maiores tentações de perder a paciência, e também maiores matérias de merecer a glória.

“Fazendo-me Deus do número destes seus filhos atribulados, e posto só em escura prisão, ora em ferros, ora sem eles, com os mais anexos do estado de cativo, sabendo quando maior era minha fraqueza que a de todos os outros, assim como sem meus merecimentos me fez mercê destes trabalhos, assi só por sua bondade me fez de me inspirar que passasse o tempo neles (que tinha desocupado) em recopilar os trabalhos de Jesus, que me poderiam ser alívio certo de minhas aflições. Cometi esta obra, havendo por indústria, e muito segredo papel, e tinta, e escrevendo as mais das vezes sem mais luz que a que entrava por gretas da porta, ou agulheiros, e buracos das paredes. Furtava pera isto o tempo, por me não verem, e os mais aparelhos necessários, senão só o que de graça a luz divina, a meus interiores e cegos olhos dava, sem eu lho merecer”.

Obra de vibração religiosa, de inspiração divina no sentimento do autor, Tomé de Jesus, a exemplo de Santo Agostinho com a dedicatória da Cidade de Deus, dedicou a sua obra à “cristianíssima e atribuladíssima Nação Portuguesa” pelos “muitos trabalhos com que Deus (meus Portugueses) foi servido de vos humilhar”. Religiosidade e patriotismo confundiam-se, porque a mesma pena que exortava à meditação interior e à salvação eterna não abstraía das calamidades da Pátria, protestando nestas claras palavras contra os invasores e conquistadores.

Os Trabalhos de Jesus são expostos em “resumo”, sem “prolixidade”, em duas partes.

A primeira parte “trata dos trabalhos que Cristo nosso Senhor passou desde a hora que foi concebido até o dia de sua sacratíssima Paixão”, e a segunda “resume os trabalhos da Paixão”. Cada parte contém 25 trabalhos, e cada um dos 50 trabalhos é seguido de um exercício espiritual, que deve ser lido “com recolhimento em hora quieta pera tirar deles os afetos que alevantam e ajuntam a alma a Deus, que é o fim e matéria deles”.

Este fim, na verdade, domina absolutamente a obra, em cada período e no conjunto, e pela pureza da emoção religiosa e ausência de dialética discursiva “forma uma De Imitatione Christi portuguesa” (Aubrey Bell). Sem artifício literário e sem preocupações de estilo, a síncope de algumas frases, reduzidas quase a interjeições e monossílabos, revela a impetuosidade desta emoção insondável (“O, ó, ó amor; ó, ó, ó amor, cale a língua e o entendimento, dilatai-vos vós por toda esta alma”).           

É pela vivacidade deste agudo subjetivismo, para o qual confluíam a renúncia à apreensão do objetivo e o sentimento da atualidade de Cristo, que os Trabalhos de Jesus são uma obra singular, não apenas na nossa literatura, mas em todas as literaturas de edificação religiosa, como prova a abundância de traduções e reedições em espanhol, italiano, francês, alemão, inglês e latim. 

 

BIBLIOGRAFIA

— Imagem da vida christam. Ordenada per dialogos como membros de sua composiçam. O primeyro he da verdadeyra philosophia. O segundo da religiam O terceyro da justiça. O quarto da tribulaçam. O quinto da vida solitaria. O sexto da lembrãça da morte. Coimbra, por João de Barreira, 1503; 2.a edição, Coimbra, idem, 1565; 3.a edição, Braga, por António de Maris, 1567; Évora, por André de Burgos, 1567 no rosto, 1569 no fecho (4.a impressão); Lisboa, por João de Barreira, 1572; Lisboa, por António Ribeiro, 1580; Lisboa, por Andrés Lobato, 1585; Lisboa, por António Alvarez, 1591; Lisboa, idem, 1592; Lisboa, por Simão Lopes, 1595 (1.a e 2.a partes); Évora, por Manuel de Lyra, 1603.        

— Segunda parte dos dialogos da imagem da vida Christam: O primeiro he da tranquilidade da vida. O segundo da discreta ignorancia. O terceiro da verdadeyra amizade. O quarto das causas. O quinto dos verdadeyros y falsos bés. Lisboa, por João de Barreira, 1572; Lisboa, por António Ribeiro, 1575; Lisboa, idem, 1585 (?), edição incerta; Lisboa, por Baltasar Ribeiro, 1591; Lisboa, em casa de Simão Lopes, 1593; Lisboa, por Simão Lopes, 1595 ( 1.a e 2.a partes); Évora, por Manuel de Lyra, 1603; Lisboa, na Oficina de Miguel Manescal, 1681; Lisboa, Tip. Rollandiana, 1843 (revista pelo dr. Rego Abranche,$).             


?>
Vamos corrigir esse problema