2. Santo Antero

Aceito reconhecidamente a palavra que o Exmo. Senhor Vice-Reitor generosamente me concede, e agradeço cordialmente aos dirigentes da Associação Académica o convite para colaborar neste serão comemorativo do nascimento de Antero de Quental; apresento-me, porém, diante de vós, minhas Senhoras e meus Senhores, com o ânimo de quem receia frustrar expectativas lisonjeiras.               

De todos os nossos escritores nenhum outro me dominou tão soberanamente como o poeta dos Sonetos e o prosador das Tendências gerais da filosofia na segunda metade do século XIX; na juventude, soube de cor versos seus, tentei, mais tarde, algumas reflexões sobre a evolução do seu espírito, que espero retomar um dia, e, quando as circunstâncias me foram propícias, colaborei na empresa, sobre todas necessária, da edição cronológica dos seus escritos, a qual não chegou a meio da jornada. Levá-la a cabo, pelo que respeita às poesias e cartas, com a severidade da exatidão minuciosa, não seria, porventura, o preito mais duradoiro das atuais comemorações?            

O pensamento de Antero foi multiforme e sofreu tantas e tão profundas vicissitudes e alterações, que sem ofensa dos factos se pode falar nas três vidas que viveu:     

— A do “homem novo”, na idade e nas ideias, de alacre saúde física e moral, confiante no amanhã, inconformista, para quem a revolução era simultaneamente dever-ser da razão e da consciência moral, e cuja expressão poética são as Odes modernas e os sonetos da década 1864-1874; 

— A do “desesperado”, artisticamente expressa pelos sonetos do ciclo 1873-1880, que se diriam a maldição vingativa de um doente incurável se a crítica não descobrisse neles a introversão de atitudes racionais, de desvalia da existência, colhidas em grande parte no pessimismo de Hartmann e na experiência pessoal da desilusão, a qual lhe gerou a sensação de suspensão da consciência; e, finalmente,          

— A do “sages”, fase derradeira da sua vida, em que a santidade lhe surge como valor supremo e, como Marco Aurélio e Espinosa, aspira a poder dizer refletidamente que a sua filosofia é a sua religião.          

Sem o conhecimento exato da cronologia dos escritos, sem o estudo minucioso da biografia, obscura ainda nalguns momentos capitais e decisivos, sem a compreensão fina das influências literárias, não podem esboçar-se juízos de conjunto, sobre o homem e a sua obra; todos serão precários, sem consistência íntima, quando não ardilosamente tendenciosos. Não obstante, a delicadeza adverte-me que não devo transportar para este ambiente a severidade das investigações minuciosas e muito menos ainda o atrevimento dos juízos críticos, sempre contaminados de pedantismo.

Assim, nada vos trago de concreto e de preciso; mas porque neste momento nos congrega a veneração por um escritor, que como nenhum outro vive na atualidade das nossas 'almas, e em cuja obra, sejam quais forem as nossas querelas e parcialidades, sempre encontramos alguma coisa dirigida ao nosso ser profundo, permiti que vos transmita algumas impressões de leitor e vo-las diga simples e chãmente, porque nem a vida nem a obra de Antero podem ser consideradas como espetáculo, nem como exercício de peloticas oratórias.

Antero deve ser lido no silêncio e na solidão. Todos os locais recatados são aptos, poucos, porém, tão propícios como certos recantos de Coimbra, pela doçura e gravidade da paisagem. Não nos iludamos, no entanto; o sentimento da natureza não é requisito indispensável para o acesso e compreensão das criações anterianas, porque a maior parte da sua obra, assim em prosa como em verso, brotou de sentimentos sociais, tão veementemente que dir-se-ia pensada para a urbe. Como Platão, no Fedro, Antero poderia dizer também que as árvores nada lhe haviam ensinado, e só com os homens aprendera alguma coisa. Daí, a sua despreocupação pela natureza e, pelo contrário, a irresistível tendência humanizadora, militante, justiceira, do seu espírito, aberto e acolhedor para todos os sentimentos sociais: a amizade, a justiça, a bondade.

Não sei de nenhum outro escritor português que tenha tido tantos e tão dedicados amigos, e tão humanamente haja convertido a amizade em prolongamento irresistível do seu ser moral. Desde os tempos de Coimbra que ele foi, porventura, mais estimado que admirado, e todos os que o conheceram e trataram com alguma privança jamais separaram a admiração da amizade. É que em Antero o trato amistoso era a um tempo, sem cálculo interesseiro, generosidade e elevação: se ele zelava por que a amizade não sucumbisse na familiaridade, os amigos sentiam que ela brotava de uma alma com o raro condão de trazer à superfície o que cada um encerrava de melhor no mais íntimo do seu ser. Por isso, os seus amigos não foram seres obscuros e quase todos, mutuamente, foram amigos entre si.

Se sem a amizade, a mais filosófica das virtudes, e os sentimentos da compaixão e da caridade, a sua obra é inacessível, por mais inteligente que seja, sem os sentimentos da justiça e a conceção da bondade como valor supremo ela é inexplicável. Com a justiça, o mais intelectual dos sentimentos, entramos no âmago da psique anteriana, porque foi este sentimento que na mocidade lhe moveu a pena, fazendo-a vibrar com mais veemência e vigor, e na idade adulta o incitou à ação militante de reformador moral, literário e social, o conduziu a imprudências e a afirmações insensatas, como aliás ocorre a todos os que ultrapassam a mediania, e foi ainda a compreensão profunda da ideia de justiça que lhe rasgou certos horizontes intelectuais e lhe fez conceber a vida como valor instrumental ao serviço de uma causa.

Haveis notado, de certo, que eu não haja aludido ao sentimento poético nem à sensibilidade artística como estruturais na psique de Antero. De propósito o fiz. Ninguém ignora que Antero, é poeta, mas não é nos seus versos que procuramos a poesia pura, como às vezes se diz, porque o que neles nos cativa, especialmente nos Sonetos, é o “drama da sua consciência” e a “autobiografia do seu pensamento”. Disse Moniz Barreto que “da grandeza da sua alma, deriva a superioridade da sua poesia”, e eu irei um pouco mais longe, arriscando o pensamento de que em Antero a criação artística é uma incidência, senão prolongamento, da ação moral: a sua consciência, modelada pelos valores morais, especialmente a justiça, na plena posse de si própria, expandiu-se na ação, servindo-se da poesia como verbo. Arrisca a título de hipótese esta explicação da criação poética anteriana; mas seja qual for a amplitude da sua exatidão, isto é, se podemos colocar no mesmo plano intencional e emotivo as Odes modernas, as Primaveras românticas e os Sonetos, creio firmemente que o perfil de Antera se define essencialmente com traços morais. Após a saída da universidade, em 1864, nada se passa no seu espírito que seja objeto de anedota; sente a vida como instrumento da missão augusta de reformador moral e justiceiro, isto é, lançar a ponte entre a realidade vital da sua consciência e a realidade não menos vital da consciência dos outros e do ser das coisas. Luta, reforma, apostolado, serão pois os objetivos supremos da sua vida, talhada quiçá pelo destino para a contemplação: primeiro, luta contra o convencionalismo literário e a sensibilidade ultrarromântica; depois, luta contra o conservantismo político, social e intelectual, e, por fim, luta consigo próprio, contra a doença que o tortura e luta contra o desespero e contra as angústias filosóficas.


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