3. Prefácio das cartas inéditas de Antero de Quental a Oliveira Martins

Dos grandes espíritos do século XIX, Antero de Quental é o que menos padece do desgaste do tempo. Descobre-se, sem dúvida, o vinco indelével da contemporaneidade em muitas páginas da sua obra, porém pela consciência das antíteses morais e pelas vicissitudes do pensamento, Antero conquistou, como nenhum outro escritor da grande centúria, um sentido profundo de atualidade.

A beleza e perfeição formal dos seus Sonetos asseguravam-lhe já, por si mesmas, o senhorio da duração; mas as angústias filosóficas, tanto ou mais que a própria expressão estética, e a marcha dramática da sua consciência em demanda da liberdade e do domínio interior, libertando-o da historicidade, volveram-no em tipo de inquietude, porventura o mais nobre predicado, senão a essência, do homem.

Lançado nas tormentas da vida interior, a tristeza, a dúvida e o pessimismo conduziram-no a experiências profundamente pessoais, forçando-o ao mesmo tempo a resolver com alcance geral alguns problemas que atormentaram a sua consciência, transformada por vezes em espelho da humanidade sofredora. Por isso a sua obra e a sua vida assumem uma importância típica, e porque constituem um bloco intimamente fundido não pode compreender-se uma sem o conhecimento da outra.

Embora escritor, Antero não viveu nunca para o público, preferindo à notoriedade as delícias do convívio e as doçuras da amizade.

Ao leitor, ofereceu apenas o resultado das suas lucubrações ou a expressão das comoções da sua consciência, reservando para os íntimos a confidência do drama interior. Para estes, nenhuma reserva, nenhuma postura, nenhuma simulação. As suas cartas tornam-se assim verdadeiras páginas de um diário íntimo, pela sincera confissão das grandes preocupações morais e intelectuais que lhe agitaram o espírito, e para o crítico, a base mais sólida para o estudo da sua personalidade e das tormentas do seu pensamento.     

Nada lhes falta, desde o informe biográfico até à vivência dos mais puros sentimentos, desde o transporte das inquietações sociais e políticas de um ser ativo, até à perspicácia do ideal e às agonias lentas de taciturnas meditações solitárias.           

Se estas eram as características dominantes do epistolário anteriano, organizado com diligência e devoção por Cândido Augusto Nazareth, muito mais se acentuam agora com a presente publicação, devida à benemerência do Sr. Francisco de Assis de Oliveira Martins, pela forma como ela nos conduz para a intimidade intelectual dos dois confidentes e para a apreensão da multiplicidade da vida interior do alto espírito do Poeta.

No admirável ensaio-prefácio dos Sonetos, pórtico digno de tão bela obra, Oliveira Martins invocou (1884) a “viva amizade, a estreita comunhão de sentimentos, o afeto quase fraterno que há perto de vinte anos nos une, ao poeta e ao seu crítico de hoje, fazendo da vida de ambos como que uma única alma, misturando invariavelmente as nossas breves alegrias, muitas vezes as nossas lágrimas, sempre as nossas dores e os nossos entusiasmos ou o nosso desalento”.     

Estas cartas são a prova viva da amizade dos dois grandes espíritos. Ligara-os na juventude, por 1870, a comunidade no ideal político, a coincidência no magistério de Proudhon, a identidade de anelos de justiça social, a obediência ao que fora mandamento do pensar europeu na alvorada romântica — a união da filosofia, do sentimento religioso           e da arte — e o enlevo de que a ambos cumpria uma missão na sociedade portuguesa; e desde então até ao dia trágico de 11 de Setembro de 1891 jamais os dois espíritos, a despeito do rumo diferente das suas ideias, da separação de lugares e da diversidade de atuação, deixaram de mutuamente conviver e de confidenciar os seus planos e inquietações, as suas alegrias e as suas tristezas.        

Tão íntima, longa e constante amizade não foi maculada pelo mútuo elogio.

Publicamente, Antero dissentiu do historiador-filósofo, em 1873, na polémica sobre o conceito e valor da Idade Média, a propósito da Teoria do Socialismo; e embora tivesse escrito com louvor acerca do Ensaio sobre Camões (1872) e do Portugal Contemporâneo (1884), os seus juízos procedem de uma conceção filosófica da História próxima da de Martins, da identidade da posição crítica e da concordância na demolição e no anúncio dos mesmos valores. Entre ambos parece ter havido um “projeto de discussão” constante, isto é, recíproca independência mental e crítica, abundando neste epistolário os períodos em que Antero louva e discorda, exorta, adverte ou elucida o escritor e o filósofo, retomando afinal com a pena o colóquio interrompido pela separação.

Houve em tão íntima amizade ascendência de um sobre o outro?

Não creio, nem o amor próprio de cada um a consentiria. A influência foi recíproca e insensível, admirando-se mutuamente pelas qualidades que lhes faltavam.

Em vez de uma amizade que se alimentasse da identidade afetiva, da fusão de duas almas, houve entre os dois fraternos amigos o sentimento de que mutuamente se completavam na diversidade e independência dos seus seres. Perdidas as cartas de Oliveira Martins, não é fácil determinar em que é que Antero lhe foi intelectualmente tributário; sabemos apenas que o historiador deveu ao poeta-filósofo indicações bibliográficas e traduções do alemão, aliás publicamente confessadas no Helenismo e a Civilização Cristã, sendo lícito suspeitar que foi Antero quem o conduziu ao germanismo e lhe sugeriu a leitura do Traité de Penchainement des idées fondamentales dans les sciences et dans l'histoire, de Cournot, cuja influência foi capital na sua conceção filosófica da história, designadamente pela teoria do acaso, uma das grandes teses que opôs à ideologia histórica da geração romântica.

Na ordem positiva, de sugestão de ideias ou de factos, faltam-nos, pois, elementos seguros; porém, se passarmos para a ordem espiritual, o mútuo tributo surge-nos com alguma claridade. Oliveira Martins admirou em Antero o homem moral e o artista, o espírito subtil e amante das ideias coerentes, e o crítico desapaixonado que lhe discutia as ideias, apontava as omissões ou deficiências e apreciava o estilo. A sua influência foi, pois, moral e intelectual; Martins, pelo contrário, foi para Antero o tipo da ação viril, do pensamento pragmático do homem forte capaz de pensar, de querer e de atuar. Como notou António Sérgio num ensaio famoso sobre Martins, o espírito do historiador trabalhava sobre o concreto. Menos especulativo que Antero, com menos experiência e perspicácia da vida interior, surdo, de certo modo, às antíteses dolorosas que ela desperta, excedia-o grandemente no sentido pragmático, na acuidade da visão prática e na formidável capacidade de trabalho ordenado e metódico. Antero cedo o reconheceu, e com espontânea sinceridade lhe confessava que o seu convívio o chamara “à realidade viva, humanamente natural, que por um insensível mas contínuo desvio, o meu temperamento místico tende sempre a afastar-me, em não havendo influências externas que me chamem à razão — e V. é para mim essa razão, a razão... como direi?, a boa razão numa palavra, positiva, real, justa”.


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