4. Prefácio da segunda edição de Raios de Extinta Luz

Os Sonetos, as Odes Modernas e as Primaveras Românticas são as únicas obras poéticas que Antero quis que lhe sobrevivessem. Constituídas na quase totalidade por poesias anteriormente publicadas em diferentes lugares e épocas, estas coletâneas exprimem esteticamente, e porventura ideologicamente também, a seleção que o Poeta operou na própria obra, de sorte que pode inquirir-se do direito de se ressuscitarem poesias que ele de certo modo enjeitou, ao desterrá-las deliberadamente para o esquecimento, quando as não rasgou em ímpetos de repúdio.

Conta João Machado de Faria e Maia, no seu artigo do In Memoriam (Porto, 1896), que Antero, em 1865, “profundamente penetrado do vago socialismo do seu livro Odes Modernas, destrói todas as suas produções anteriores, os belos versos românticos do 'Vasco' e as expansões amorosas da sua primeira mocidade, 'coisas obscenas' dizia-me ele, na sua exaltação ascética e revolucionária, ao mesmo tempo que solicitava o meu auxílio para aquela hecatombe de um passado, tão odioso aos seus olhos, agora puritanos, como o poderiam ser os erros juvenis da carne a um monge da Idade Média. A cena passou-se na casa da Praça de São Pedro: os pobres versos, uns, o 'Vasco' por exemplo, em grandes cadernos, cuidadosamente cosidos, outros em centos de folhas soltas, saíam de uma lata envernizada para as nossas mãos, que impiedosamente os lançavam, rasgados em mil bocados, embranquecendo o solo onde caíam”.

A curiosidade erudita ou crítica pode conjeturar explicações mais ou menos diversas desta destruição, mas, quaisquer que sejam, todas implicarão sempre por denominador comum o repúdio e, consequentemente, o problema da legitimidade da ressurreição literária de tais poesias sob títulos de empréstimo, como o do presente volume, aliás belo e justo.

Teófilo Braga, trabalhador gigantesco, cuja conceção e método da história literária o afastavam destes escrúpulos morais e estéticos, visto ter por alvo a adquisição de factos referentes à vida e à obra de escritores, consideradas uma e outra, por assim dizer, sob o ponto de vista quantitativo e como pertença pública, não hesitou em dar ao prelo grande parte destas poesias sob o título Raios de extinta luz. Poesias inéditas (1859-1862) com outras pela primeira vez coligidas, prefaciadas e precedidas de um escorço biográfico, Lisboa, 1892 (Manuel Gomes, editor).

A presente edição, que é a revisão anotada e crítica do texto de Teófilo Braga levada a cabo pelo profundo saber anteriano do Dr. José Bruno Carreiro, tem, assim, um precedente que quebranta melindres e escrúpulos; mas é óbvio que o “ter-sido” não justifica por si só o  “dever-ser” nem confere valor estético a um livro, cuja constituição, de poesias minores e enjeitadas, não aumenta nem distingue a glória do Poeta.

Não obstante, afigura-se-nos que os Raios de extinta luz são um livro necessário, sem o qual a história literária e espiritual de Antero ficaria incompleta.

Antero há de ser para sempre o poeta dos Sonetos, mas a imortalidade do seu nome não radica apenas na criação estética, porque a sua dignidade de consciência, as suas inquietações metafísicas, os seus anseios de regeneração moral e social, numa palavra, tudo o que constitui uma personalidade moral plenamente autónoma, tem valor próprio, tão fulgurante e perene como os escritos do poeta e do prosador esteticamente considerados. Sem o conhecimento minucioso da sua sensibilidade, do seu pensamento e da sua obra, da que escreveu e da que planeou, da que meditou e da que simplesmente imaginou ou concebeu, não é possível o acesso ao espírito e a compreensão do génio anteriano, cheio de contrastes e de propósitos quase sempre malogrados. Demais, Antero nasceu com extraordinária capacidade recetiva de ideias e pujante facilidade de expressão literária, e porque o seu espírito se nutriu de ideais raros e peregrinos, distantes, pelo menos, dos que tradicionalmente estruturavam o português habitual, e a sua consciência profunda sofreu, por vezes intensamente, crises, fracturas e desvios, que permitem falar de uma evolução espiritual, impõe-se naturalmente o apuramento das fontes das suas conceções, a análise da individualização do seu estilo, o conhecimento do processo psicológico da sua inspiração, e a investigação das tendências, das inibições e da diversidade da sua conduta.

Bastariam estes princípios gerais, inerentes à crítica literária objetiva, para justificar a presente reedição, se, sob outro ponto de vista, ela não tivesse o valor peculiar de exprimir a primitiva sensibilidade poética de Antero e de assinalar a zona do seu espírito em que a razão se universalizou e, porventura, depurou com a inquietude da dúvida e com as certezas, algo frágeis e transitórias, de novas crenças.              

Pelo que vimos dizendo, os Raios de extinta luz têm sob o ponto de vista crítico um valor subsidiário e veicular, de materiais com que um dia se construirá o livro rasgado, sólido e amplo que o génio anteriano aguarda. 

No prefácio das Primaveras Românticas disse Antero em 1872, aos trinta anos, que publicava este livro por se não envergonhar “de ter sido moço e ter sido ignorante, mas inocente”. Ignorância e inocência, mais sinceras e puras, quiçá, que nas Primaveras, são, com efeito, as notas dominantes das Juvenília, ou poesias anteriores a 1863, isto é, o ano em que, dispostas para o prelo as Odes Modernas, se pode dizer que “abandonara decididamente e conscientemente a velha estrada da tradição”, para empregar as formais palavras da conhecida carta autobiográfica a Guilherme Storck (14-5-1887). A penetração intelectual, o fino sentido estético da estimativa, a extraordinária facilidade de expressão, revelam-se, admiravelmente por vezes, nas imitações e versões que constituem a parte final dos Raios; mas as Juvenília têm o encanto e o sabor peculiar das primícias, patenteando com ingénua franqueza a estrutura íntima da sensibilidade do Poeta e a alvorada de alguns sentimentos e ideais, que com vária constância e vigor o acompanharam através da existência.     

Estão neste caso, por exemplo, a conceção heroica da fidelidade ao ideal e a visão prospetiva e progressista da vida, sem o que não teria sido possível a ética e a ação militante do socialista e do político, as quais se manifestam germinalmente em 1859, na Senda do Calvário, a despeito da influência da Harpa do Crente, de Herculano, como notou Teófilo Braga em As modernas ideias na literatura portuguesa (t. II, 1892); e as tendências para a plastização do espiritual e para a transfiguração do circundante, características salientes dos Sonetos, revelam-se igualmente nas poesias A pirâmide no deserto, do mesmo ano de 1859, que dir-se-ia sugerida pela famosa proclamação de Napoleão no arranco antes da Batalha das Pirâmides e em qualquer caso não se me afigura um eco retardatário do sentimento romântico das ruínas, e À Beira Mar, de 1860, que parece a subjetivação do espetáculo do cair da tarde visto da penedia do Forte de Santa Catarina, na Figueira da Foz.

Algumas constantes da constituição poética de Antero, como a tendência para a dramatização de ideias gerais e normativas, e a introversão, inerente à inspiração lírica, pela qual o objeto inspirador, real ou ideal, simultaneamente se desnatura e personaliza, brotam limpidamente dos primeiros versos; dois temas, no entanto, dominam os seus dezoito anos e dão peculiaridade às Juvenília: o amor, como imperativo da plenitude vital de uma mocidade sadia e esplêndida e já como ideal ético da comunhão dos seres, e o sentimento, mais do que a ideia, de Deus, cuja sublimidade se lhe revelou aos dez anos com a leitura da ode de Herculano, Deus, como confessou no prefácio do Tesouro Poético da Infância, e que mais tarde, na desenvolução do seu pensamento e no contraste das suas reações afetivas, adquirirá formas diversas e até antagónicas, designadamente a da preterição do Summum Ens na conceção do Universo físico e moral. Outros temas se virão juntar a estes pouco depois, como os da liberdade, e, por 1863, no Fiat Lux, sob a forma de uma fantasia cosmogónica, aparece-nos, talvez pela primeira vez, a ironia, pesada e fácil, ainda distante da finura do sentimento do contraste e da inevitável limitação de todas as coisas, facetas refulgentes dos Sonetos.


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