4. Prefácio da segunda edição de Raios de Extinta Luz

A estrutura psicológica, o mecanismo da inspiração, o predomínio do conceber sobre o raciocinar, a atmosfera imaginativa que banha quase todas as suas conceções, próprias ou assimiladas, e, sobretudo, a sinceridade ingénua das Juvenília, parecem corroborar• o juízo de que a constituição mental de Antero foi essencialmente poética, que não filosófica. Pode dissentir-se deste juízo, porque os factos não são decisivos, nem tão complexa aporia se deixa aprisionar pelo ilusionismo de soluções expeditas; historicamente, porém, pelo alargamento e substituição da temática, pelo pendor declamatório, pelos anelos morais, pela função militante da poesia, as Juvenília são claro testemunho do “sopro romântico, cálido mas balsâmico” da “encantada e quase fantástica Coimbra de há dez anos” (1862), como escreveu no prefácio das Primaveras Românticas.

Coimbra deixa sempre no espírito dos que por lá passaram a saudade dos vinte anos e às vezes a satisfação de se ter ganho, moral ou intelectualmente, a batalha que a juventude trava com a insignificância, a facilidade e o reles, quase sempre decisiva para a vida inteira, mas em Antero, e em grande parte da sua geração, dividida como todas as gerações académicas em parcialidades que ao tempo se alcunhavam de “traça” e “sopa”, a “encantada e quase fantástica Coimbra” queria dizer sentimento de altura, convicção de renascimento espiritual, desapego do passado, alegria fecunda de criar.

“O facto importante da minha vida, durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo dela, escreveu na já citada carta autobiográfica, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu, ao cair, pobre criança arrancada do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição. Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas próprias da primeira mocidade, a turbulência e a petulância, os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das qualidades e defeitos com que, aos dezoito anos, penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia”.

O desapego do passado, aqui tão precisamente descrito e confessado, implicava como possíveis duas atitudes diversas: empreender ab ovo a prefiguração de uma mundividência total, ou resvalar para a impertinência do mau humor, para a ironia cética da descrença, para o transe gélido do desespero. Foi o primeiro destes caminhos que Antero então seguiu e havia divisado nas ideias de Proudhon, de Michelet, de Hegel, para apontar apenas as que considero capitais, e que interpretaria quase exclusivamente sob o ponto de vista pragmático, como instrumento de combate social e como conceção da história, isto é, da projeção do espírito no tempo.

Quaisquer que tenham sido os arrebatamentos da ilusão, o calor das esperanças e a firmeza das convicções, não podia ter uma alma alegre quem tão profundamente renegava o seu tempo e, de certo modo, o seu ser; por isso o desapego e a despedida do que havia sido marcam psicologicamente o advento do revoltado, ou se se quiser da experiência moral da vida nova, vinculada inicialmente à época e à sociedade — daí as suas atitudes de reformação —, e mais tarde, após o desengano e a reflexão, ao mundo inalterável do espírito, considerado essencialmente como depositário de valores eternos e de imprescritíveis deveres humanos.

Servem, pois, os Raios de extinta luz, e sobretudo as Juvenília, compaginadas aos primeiros ensaios do prosador, para debuxar o “quadro” da mocidade de Antero, com o “acordar das primeiras paixões amorosas” próprias desta idade da vida e com o dealbar da poesia militante, parenética e anatematizadora, das Odes Modernas que em Portugal fez “escândalo” e em Espanha ouço ressoar nos Gritos de combate (1875) de Núñes de Arce.


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