2. Reflexões sobre Teixeira de Pascoais

“Mas o miolo é do poeta. Só ele saboreia a vida até ao mais íntimo do seu gosto amargoso, e se embrenha nela até ao mais profundo das suas sensações e sentimentos. É o ser interior a tudo. Para ele, a realidade não é um conceito abstrato, ideia pura, imagem linear; é uma conceção essencial, imagem hipostasiada, possuída em alma e corpo, nupcialmente, dramaticamente, à São Paulo ou Shakespeare.”

Este trecho de O Homem Universal, tão denso de audaciosas afirmações, que para a razão comum são autênticos saltos mortais em planos não só incomensuráveis entre si mas ainda incompatíveis condensa o essencial da atitude de Teixeira de Pascoais. Não faltam entre nós poetas com o sentimento da insuficiência da explicação científica, mas penso que somente Teixeira de Pascoais deu o passo decisivo da ordem física para a ordem metafísica, entendendo por tal o pensamento que se situa, não nas coisas e nos respetivos comportamentos, mas no que a sensibilidade intui estar latente e para além da latência das coisas e dos seus comportamentos. Nenhum outro poeta escreveu, como ele, que “a sensibilidade poética vibra, como nenhuma outra, ao contato da realidade que a conhece, por assim dizer, em primeira mão. Uma verdade, quando aparece no mundo, é o poeta a primeira pessoa que a visita”. Estas palavras escritas no limiar da Arte de Ser Português indicam o significado e o valor que Teixeira de Pascoais atribuiu à Poesia, e que, anos depois, no São Jerónimo e a Trovoada, tornou a repetir com estas palavras: “Sentir é viver ou conhecer, mas conhecer de dentro para fora, desde o fundo do abismo originário. Só há sabedoria nos poetas. Só podemos vislumbrar a verdade, que é realidade humanizada, em alguns versos sublimes, e mais na sua música talvez, que no sentido das palavras.” A poesia torna-se, assim, em reveladora de verdades de um mundo adâmico, mas, como é óbvio, para empregar a distinção que faz nos Poetas Lusíadas, não tem em vista “a poesia culta e perfeita”, do equilíbrio estético, mas a “poesia espontânea e imperfeita”, isto é, “o Verbo enamorado das coisas e dos seres que nele se refletem e vivem” e que “surge nos períodos genésicos da alma”, graças “a um estado de alma criador e indefinido”.

Todo o mistério da criação poética se contém nestes períodos, e o mistério mais se adensa, por assim dizer, quando se relaciona esta distinção da poesia com a distinção que ele também estabelece entre as duas presenças do ser: a aparência, que é a presença “exterior ou aparente”, e a aparição, que é a “presença íntima e remota”. Graças a estas distinções, que não são de maneira alguma puramente verbais, o poetar espontâneo tem por objeto aparições e não aparências, não consistindo, portanto, numa atividade com centro na expressão emocional ou na metamorfose da realidade. Desentranha, intrinsecamente, a revelação de conhecimentos, e, por isso, o poeta autêntico não encerra somente significado literário mas ainda, e principalmente, noético, porque as aparições se lhe tornavam realidades no instante em que as corporalizava pela palavra. As coisas, para Teixeira de Pascoais, pode dizer-se, começavam a existir quando ao seu espírito se vestiam com a palavra reveladora. “A melhor ciência”, escreveu no São Jerónimo e a Trovoada, “é a dos ignorantes inspirados—, a ciência anterior aos sábios e interior e idêntica ao próprio ser”. “A vida é inspiração”, acrescentava, “e cada ser é um poema escrito”. “Só em certos momentos excecionais”, disse ainda noutro passo de Os Poetas Lusíadas, “o poeta se torna criador de vida, rival da divindade”, mas nestes momentos ele se converte num “ser quase divino, que faz com palavras o que Deus fez com água, terra e sol”.

Tanto basta para se apreender que em Teixeira de Pascoais, a inspiração poética, apesar de obedecer “ao derivar caprichoso da sua sensibilidade” como confessara ", era consistente, isto é, reportava-se a realidades presentes à sua consciência de inspirado, não sendo, por conseguinte, mera excitação da imaginação. As coisas e os seres, como ele próprio escreveu, “feriam-lhe os olhos com a pancada da sua própria realidade. Mas nessa realidade, há qualquer coisa de intangível ou além dela, que é o desespero inspirador do poeta” ". Por isso, não foi somente de introvertido o seu poetar, porque além de contemplar também descobria e animava. A sua mente, a um tempo, captava e transformava, incutindo em todos os produtos da sua atividade a índole inconfundível da sua original maneira de ser. Tudo o que tinha acesso à sua mente era recebido e modelado pela compleição da sua mentalidade, que não estabelecia fronteiras entre o sentimento e a ideia, e porque esta ação transformadora foi constante e não acidental ou circunstancial, a atividade intelectual de Teixeira de Pascoais foi sempre radical e intrinsecamente poética, nas estâncias dos versos como nos períodos das prosas.

No homem de mentalidade científica, o pensamento nutre-se da submissão às determinações exatas do objeto e aspira a deixar-se conduzir somente em conformidade das exigências impessoais do método; no homem de mentalidade poética, como Teixeira de Pascoais, tudo se passa de maneira diversa. É. que, propriamente, a sua mente não entrava em contato com as coisas para lhes apreender a realidade objetiva, mas sim com o jogo de imagens e de associações que as coisas lhe despertavam e ao qual se rendia totalmente, com íntimo deleite, sem ascese, e com a convicção de atingir conhecimentos mediante a aparição reveladora da palavra ou da metáfora. Ao contrário do sábio, que aspira ao saber impessoal, de todos e para todos, Teixeira de Pascoais, pelo ditame incoercível da sua nativa constituição, só atendia ao que lhe era radicalmente original e próprio, podendo dizer-se que para ele era real o que lhe despertava a inspiração e incoercivelmente se traduzia pela palavra. A procura dos enunciados inequívocos e exatos, que é para o sábio um dos tormentos do seu discorrer, não oferecia dificuldades a Teixeira de Pascoais, que todo se entregava ao deleite da expressividade das palavras que lhe ocorriam irresistível e iluminadamente, a um tempo com valor estético e com sentido designativo primordial e originário. “O verbo”, escreveu, “é irmão da liberdade, é propriamente a liberdade. É nele que as almas se libertam, porque se exprimem ou definem” ". Por isso, não hesitou em afirmar que “qualquer opinião, como qualquer ideia, tende a transformar-se em realidade, tal o poder de encarnar que tem o verbo” ", exemplificando este poder com a afirmação de que “a palavra irmão destruiu o paganismo. Quem a criou foi Jesus. Criou a palavra do seu tempo; e o tempo ficou a pertencer-lhe, transfigurado em eternidade. Cada período da história é aberto por uma palavra nova. A questão é encontrá-la e agitá-la, no meio da rua” ".

O prazer que o sábio encontra no rigor de uma demonstração ou na redução do que lhe é dado à objetividade e impessoalidade dos juízos, Teixeira de Pascoais o encontrava no enlevo da criação, a qual não só o deleitava esteticamente, senão que lhe dava a sensação de se instruir acerca do ser e das respetivas qualidades e relações imateriais.


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