2. Reflexões sobre Teixeira de Pascoais

Daqui, duas inevitáveis correlações: a primeira consiste em que o mundo que Teixeira de Pascoais configurou, e no qual se situou habitual e irresistivelmente, não foi o mundo da objetividade impessoal e da razão coerente e consistente; e a segunda implicou que tivesse sido filósofo por ser constitutivamente poeta.

Deixo de lado o complexo e subtil problema das relações entre a filosofia e a poesia, bem como a indagação das vias pelas quais se pode chegar à conexão de uma e de outra. São temas que me desviariam do objeto principal desta reflexão. Pretendo somente notar que o poeta do Maranus foi até hoje o único poeta português no qual o pensamento filosófico se constituiu simultaneamente com o poetar, ou, por outras palavras, não foi um poeta que deu expressão estética a pensamentos anteriores ao próprio ato de inspiração e de criação literária. Em Antero de Quental, considerado, e justamente, o mais        filósofo dos nossos poetas, impõe-se que distingamos o ato ideatório do estado poético, ou por outras palavras mais explícitas, o seu poetar incidiu sobre pensamentos anteriormente pensados, a ponto de ser possível assinalar, aquém e além, as páginas de Proudhon, de Vera (Hegel) e de Eduardo von Hartmann, que lhe subjazem. Em. Teixeira de Pascoais nada de análogo se passa, porque o seu filosofar coincidia com o próprio poetar; por isso, a sua filosofia exprime-se mais e melhor por imagens do que por conceitos e, correlativamente, o seu poetar teve normalmente densidade noética, isto é, aspira a dizer algo acerca do objeto sobre que se exerce. Este facto, que julgo solidamente estabelecido, desentranha várias consequências, bastando acentuar somente a não-descontinuidade entre o ato ideatório e o estado poético, e, portanto, entre o poema e o pensamento que ele expressa. Poesia e intencionalidade, expressão e expressado, constituem, inseparavelmente, a resposta da sensibilidade e da mente de Teixeira de Pascoais às solicitações e sugerências da existência, em conformidade com a sua nativa maneira de ser e de se exprimir

Sem embargo da íntima conexão que as conjuga, pode refletir-se separadamente sobre a poesia e a filosofia, considerando-as como as vertentes principais do seu espírito. Tais reflexões abrem novos caminhos, diversos do que até agora segui. Não os seguirei, porém, pelo menos por agora, mas não quero terminar a reflexão que me propus sem condensar em breves períodos o meu juízo acerca do poeta e do filósofo.

Teixeira de Pascoais foi um poeta autêntico, puro, e confiado: autêntico, pela absoluta sinceridade da inspiração; puro, pelo desinteresse, isto é, sem mancha de compromisso e de empenho, salvo com o que lhe ditou a sensibilidade, que na arte como na vida abominou as intenções e prescrições coercivas; e confiado, pela entrega com que todo se deu ao seu destino de poeta. É, por vezes, um poeta difícil, mas não arcano, exigindo um esforço e, sobretudo, uma altura que impedem que boa parte da sua obra poética se torne popular. No entanto, é e será poeta de sempre e para sempre, pelo enlevo do lirismo e pela compenetração metafísica.

Pelo ditame da sua constituição mental, Teixeira de Pascoais deu-nos uma visão poético-metafísica da realidade, que é propriamente uma mundividência pessoal, dado que os seres e aconteceres da natureza e da história são sentidos e não são explicados nem mesmo revividos na sua realidade concreta. Com ser pessoal, insubmissa e até hostil à sistematização racional, de teor difuso e volátil, como é próprio de quem totalmente se entrega ao deleite da libertação espiritual, sem olhar para o valor explicativo ou prático dos pensamentos, não pode dizer-se que a sua visão do mundo seja caprichosa, arbitrária e volúvel. Não tem, nem podia ter, a arquitetura de um sistema, dentre outras razões pela que expressivamente deu nos Poetas Lusíadas ao escrever que “a autêntica poesia é composta sem preocupações plásticas ou ideativas, porque tais preocupações resultam duma queda da inspiração e estabelecem logo uma distância entre o sentimento e o seu corpo”. Não obstante, o desenvolvimento do seu pensamento como que assenta nalgumas intuições fundamentais, cujo alento e ritmo atuaram à semelhança dos princípios condutores das sistematizações racionais, dando relativa coerência e compatibilidade ao teor das congeminações. Dessas intuições, esparsas ao longo da sua obra e que se condensam com mais concisão no que subjaz aos parágrafos de A Minha Cartilha, ainda inédita e de evidente intenção, não direi sistemática mas coordenadora, importa atentar nas de estrutura nuclear e de potencialidade desenvolutiva. Se não erro, são quatro as intuições fundamentais.

A primeira consiste na dualidade irredutível do mundo, ou seja, o mundo da “existência, ou da ciência, ou da razão”, e o mundo da vida o qual descreve para além da razão “a sua órbita fantástica, ou poética ou irracional”. O mundo da existência real, que é o mundo da ciência, tem uma área que “principia e finda no reino mineral. A árvore é já para os olhos dum poeta”, diz no São Jerónimo e a Trovoada, acrescentando, neste mesmo livro, que este é o mundo da razão, “essa triste emparedada”, que “é uma faculdade técnica ou mecânica, fábrica de raciocínios minerais. Ignora a ideia alada e viva que, subindo, ultrapassa os limites da existência”. Para a sua mente de poeta, o mundo autêntico é o mundo da vida, que é também o do espírito, porque “a matéria criada é um reflexo do espírito criador”. Este mundo autêntico não é para todos, como o mundo da ciência; é somente de “certos poetas já fantasmas ou convertidos, pela dor, na sua própria sombra deslumbrada. A dor, acrescentava, de tal modo nos apura a consciência e a torna cristalina, que nela se intensifica e resplende a luz espiritual, emanada de um sol oculto”.

A segunda intuição reporta-se à realidade que nos cerca, conferindo-lhe uma hierarquia qualitativa de fins sucessivamente mais valiosos. “O que existe, não existe para si mesmo, mas para outra existência que lhe é superior em qualidade, escreveu em Poetas Lusíadas. “Eis porque os corpos materiais são transitórios e passageiros. O mineral, por exemplo, existe para o vegetal; o vegetal, para o animal, tornando-se humano, existe para o espiritual, que se torna divino.” A hierarquia dá-se no sentido espiritual crescente, concebendo-a somente em relação aos fins dos elementos que constituem o universo, e não em relação ao universo no seu conjunto, “porque sendo ele infinito, exclui qualquer ideia de movimento”.

A terceira intuição atribui à realidade autêntica que é espiritual, uma força intrínseca mais intensa do que a natureza extensiva do espaço em que ela se manifesta. Implica esta intuição a ação, a distância, e como que a irrealidade do espaço, porque se cada ser ou corpo é intrinsecamente uma força, ou mais propriamente uma forma, ou antes uma alma, a força de cada ser é simultaneamente presente em vários lugares. Daqui, a visão imaterialista, que se lhe configurou num vago energetismo que torna a vida humana “uma fuga para além de tudo” e confere a “todo o gesto anti-animal um valor transcendente”.

Finalmente, a quarta intuição concretizou-se na conceção da saudade, não só como expressão suprema do génio português senão ainda como “a própria alma universal, onde se realiza a unidade de tudo quanto existe”, como escreveu em Espírito Lusitano.


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