4.° - Tópicos

I. O fim dos Tópicos é procurar um método que nos forneça uma solução provável para todas as questões possíveis. Antes de expor, porém, as regras e artifícios da dialética, é necessário conhecer as matérias da discussão, isto é, as ideias que entram geralmente no discurso e a fonte donde derivam. O Livro I ocupa-se deste assunto.

As matérias da discussão, como do raciocínio demonstrativo e do silogismo em geral, consistem em proposições e problemas, que, sendo fundamentalmente idênticos, se distinguem todavia pela forma. Assim, por exemplo, a interrogativa: o homem deve ser definido um animal racional? Exprime uma proposição; mas se se formular destoutra forma: o homem deve ou não ser definido um animal racional? Constitui um problema.

A matéria de qualquer questão tem por objeto o género do sujeito, ou a definição, o próprio ou o acidente — o que Aristóteles chama as quatro diferenças e a que mais tarde se chamou as cinco vozes ou predicáveis de Porfírio, acrescentando-lhe a diferença, que Aristóteles não considerou como uma classe à parte, mas como um limite que separa um género do outro.

Para demonstrar que estas quatro diferenças abrangem de facto todos os elementos do discurso ou a matéria de qualquer proposição, pode recorrer-se ao silogismo ou à indução, que são as duas formas gerais de argumentação dialética e de demonstração lógica.

Prova-se por indução, se considerarmos separadamente um grande número de proposições e problemas, e silogisticamente por esta forma: qualquer coisa que se atribua a um sujeito, ou o sujeito lhe pode ser reciprocamente atribuído ou não pode; se o sujeito e o atributo estão numa relação de atribuição recíproca, ou o atributo está contido na definição do sujeito ou não está; se está contido na definição do sujeito é necessariamente ou o género do sujeito ou a sua diferença específica, porque a definição é composta destes dois elementos; se não está contido na definição do sujeito, não pode ser senão um acidente.

A probabilidade constitui o domínio próprio da discussão, porque a evidência e o absurdo são por sua natureza excluídos — aquela, porque não precisa de ser demonstrada, esta, porque o não pode ser. De sorte que problemas dialéticos são os que podem receber soluções contrárias ou que ultrapassando os limites da razão humana têm uma solução definitiva impossível.

Como matéria de discussão, além das proposições e problemas, há ainda as teses, algumas das quais são paradoxais, como as que fundamentam alguns sistemas antessocráticos, designadamente a impossibilidade do movimento da escola de Eleia e o devir eterno e constante de Heráclito.

Os meios que proporcionam a argumentação dialética, isto é, a invenção dos argumentos, são quatro:

1) As proposições prováveis de qualquer espécie, como as opiniões do senso comum ou dos sábios.

2) As distinções das palavras que têm a mesma significação aparente.

3) As distinções entre as coisas que podem ser tomadas umas por outras.

4) As semelhanças.

O primeiro processo por si só se justifica.

Com efeito, é impossível uma discussão que não derive de uma ideia ou proposição provável — entendendo-se por proposições prováveis as que se baseiam no senso comum ou na autoridade dos sábios. O segundo e terceiro processos são indispensáveis para a clareza da questão, mantendo-as nos precisos termos, além de permitirem embaraçar o adversário, aproveitando a sua confusão de ideias e de evitarem discussões puramente verbais.

Nos Livros II, III, IV, V, VI e VII, indica, assaz obscuramente, os tópicos ou lugares comuns, a que pode recorrer-se nas questões sobre o género, a definição, o próprio e o acidente.

De todos os argumentos, uns, os argumentos gerais, reaparecem frequentes vezes, servindo indiferentemente para todas as discussões, ao passo que outros, os argumentos especiais, unicamente se podem aplicar com propriedade a certas e determinadas.

Para Aristóteles os argumentos gerais são: a divisão ou distinção, a significação etimológica, que Cícero e Ramo, como observa Franck, chamam notatio, os correlativos, que compreendem, como já vimos, quatro espécies de relações, as conjugações e os casos, que os escolásticos, a exemplo de Cícero, traduziam por conjugata, as causas e os efeitos ou os antecedentes e consequentes, a comparação, isto é, o maior, o menor e a igualdade, e, finalmente, o aumento e diminuição, que Cícero exprimia por adjuncta.

A divisão, de uso frequente em Lógica e Dialética, constitui um meio excelente de refutação. Assim, formulando-se uma proposição geral, devemos aplicá-la sucessivamente aos géneros que abrange, às espécies contidas em cada um dos géneros e finalmente aos indivíduos. Se as exceções forem numerosas, a proposição é evidentemente falsa. Quando não for possível aplicar a divisão emprega-se a distinção.

A etimologia é muitas vezes necessária para o conhecimento da natureza duma coisa, mormente quando o termo que a exprime sofreu uma alteração na sua significação primitiva.

Pela correlação, isto é, a relação constante entre dois termos, basta que se conheça integral ou parcialmente um dos termos, para que o outro ipso facto seja conhecido. Assim, por exemplo, pode representar-se uma coisa na sua totalidade ainda que se veja unicamente a sua metade, e definir-se a cegueira tendo uma ideia clara da visão. Isto mesmo se pode afirmar dos contrários e contraditórios — as duas outras formas de correlação, com a diferença, porém, de que estes últimos unicamente servem para refutar, enquanto que as outras formas provam e refutam.

A conjugação e os casos, constituem o que hoje chamamos derivados, e a sua importância, isto é, os meios que proporcionam na argumentação, reside na relação que existe entre os termos primitivos e os termos derivados, que nos permite descobrir uma relação semelhante entre as ideias ou coisas que esses termos exprimem.

Para bem se conhecer uma coisa é conveniente remontar às causas que a produziram e que a podem destruir e aos efeitos que a sua génese ou destruição produzem. Assim, do bem jamais resultará o mal, como deste raramente provirá o bem. As aplicações deste lugar são numerosas, exemplificando-o longamente Aristóteles.

Os argumentos baseados na comparação constituem o que na Escola se chamava os raciocínios à pari e à fortiori.

O aumento ou diminuição é necessário sempre que o objeto da discussão, pela sua extensão, não possa ser apercebido por desarmónico com os meios de conhecimento. O emprego deste lugar é relativamente raro, porque nem todas as coisas permitem o aumento ou diminuição.

Os argumentos ou lugares especiais admitem tantas formas quantas as matérias de discussão a que se aplicam e por consequência devem distribuir-se pelo género, definição, próprio e acidente.

Assim, por exemplo, quando a questão tiver por objeto o género de uma coisa, ela deve ser decidida por alguns dos princípios relativos ao género e à espécie, embora não seja necessário que o género admita todos os atributos da espécie, porque o género tem mais extensão e a espécie mais compreensão; quando for a definição o objeto da questão, deve ser resolvida pelos princípios relativos à definição e à coisa definida — método que segue na exposição dos outros lugares.

Aristóteles foi quem pela primeira vez empreendeu uma obra desta natureza, onde Cícero, Quintiliano, e, duma maneira geral, todos os retóricos, encontraram abundantes materiais. Não é, pois, sem razão que Reid afirma que Aristóteles, «depois de ter reduzido a matéria do pensamento humano a dez categorias e tudo o que se pode atribuir a um sujeito a cinco predicáveis, procurou reportar todas as formas do raciocínio a regras fixas de figura e de modo, e dispor todos os lugares comuns de argumentação sob um certo número de princípios, aspirando assim a reunir tudo o que é possível dizer pró e contra em todas as questões, e estabelecer como que um imenso arsenal, onde os lógicos de todos os tempos pudessem encontrar armas ofensivas e defensivas para todas as coisas, sem lhes deixar a possibilidade de inventar uma nova».

No último livro (VIII) dos Tópicos, Aristóteles indica as condições de aplicação destas armas dialéticas às circunstâncias da discussão, a arte de interrogar, ou de formular as questões, a arte de responder, ou de iludir as dificuldades e, finalmente, a melhor forma de sustentar uma tese.

Interrogar dialeticamente é argumentar à maneira de Sócrates, isto é, apresentar sob a forma de questões todas as dificuldades que podem embaraçar o adversário, numa palavra, recorrer a todos os meios, qualquer que seja a sua natureza, que possam empregar-se na discussão. Estes meios são de duas espécies: as proposições necessárias, que servem para a construção do silogismo, e as proposições acessórias ou contingentes, que Aristóteles, atendendo ao seu fim, divide em quatro classes: as que servem de base à indução, as que são meios de amplificação, as que visam a ocultar o fim que se quer atingir e, finalmente, as que, pelo contrário, procuram tornar mais claro o objeto da discussão.

É de boa prudência, nas discussões, começar pelas proposições contingentes, reservando para o fim as proposições necessárias.

A arte de responder varia com o fim que se prossegue. Quem procura instruir-se, deve esquecer o amor-próprio e, sem hesitações, aceitar o que lhe parecer verdadeiro, contrariamente aos vaidosos e sofistas que, procurando apenas contradizer todas as opiniões, devem ser sóbrios nas respostas, para que o adversário não tire partido das suas próprias palavras. Pode ainda a discussão ser um mero exercício e para os que cultivarem esta arte do raciocínio e da expressão, Aristóteles aconselha várias regras, que derivam da natureza da questão.

Para assegurar o êxito de uma tese, devem examinar-se as probabilidades racionais da sua defesa, rejeitando-se in limine as que importarem consequências absurdas, favoreçam as paixões e os maus costumes ou sejam contrárias ao senso comum, isto é, às opiniões geralmente aceites. Este livro termina pela análise das formas do raciocínio e dos sofismas, que não expomos porque a elas nos referiremos quando tratarmos dos Analíticos.

II. Ramo, pela forma como as matérias eram expostas, considerava os Tópicos como o caos da invenção, atribuindo a Aristóteles a «repetição pueril dos mesmos lugares» além de ter escolhido, dentre todas as questões possíveis, «quatro géneros de questões sofísticas, donde a dialética ressaltasse claramente».

III. «Não vejo citado, diz Gouveia, o nome de Rodolfo Agrícola, teu mestre neste assunto e a quem pertencem estas críticas — nome que não devias omitir por uma forma tão pouco correta». Abstraindo porém deste plágio, serão procedentes estas críticas? Gouveia defendendo Aristóteles, expõe numa brevíssima síntese o conteúdo dos Tópicos. Se o fim de Aristóteles era tratar com clareza os lugares da argumentação, não devia porventura distingui-los consoante as questões em que se empregam?

«A meu ver a melhor maneira de tratar um assunto tão simples era atribuir a cada questão os seus lugares; e assim teve de estabelecer géneros de questões, não de todas, mas daquelas que costumamos empregar nas diversas disciplinas e que são ao todo quatro»: o acidente, o género, o próprio e a definição. (As quatro diferenças de Aristóteles).

«A diferença que pode julgar-se omitida não o é de facto, visto não poder separar-se do género» e a espécie «é por sua natureza completamente alheia às disciplinas (ciências), porque não pode dizer-se senão de coisas isoladas sobre as quais é impossível estabelecer qualquer questão, visto que não pode haver ciência de coisas que não possuam número determinado e por natureza transitórias». Mas, ocorre perguntar, como é que dentre tantas questões que podem suscitar-se, Aristóteles unicamente refere estas quatro? Porque são apenas estas as que podem propor-se, como «se infere do facto de tudo o que se procura de um objeto lhe ser superior ou igual», visto que o superior contém necessariamente o inferior.

Com efeito «se se trata de uma coisa superior (universal) ou ela se encontra na natureza do objeto da questão, de modo a constituir um género ou diferença, ou então é algum acidente; mas se se trata de coisa igual, ou temos o próprio ou a definição». Estas questões, porém, podem apresentar-se de duas formas: «ou perguntamos se o homem é animal ou se o animal é género do homem, se a alvura é acidente do cisne ou se o cisne é branco, etc.». Gouveia, que apenas exemplifica este assunto, não o teorizando, refere-se aos problemas e proposições.

Analisando a outra crítica, Gouveia, não vê na repetição dos lugares, motivos de admiração e muito menos de censura, justamente porque «se acomodam a diferentes questões». Compreende-se a restrição de Cícero, que, apesar de reconhecer que estes lugares convêm a numerosas questões, são mais próprios para certas e determinadas; mas é absurda e inconveniente a crítica de Ramo. Não se empregam porventura «as causas e os efeitos» às «questões conjeturais e definitivas»?

«Respondi, diz Gouveia, o mais laconicamente possível às duas objeções de Agrícola, que quiseste fazer tuas. A afirmação puramente retórica de que não percorres todos os defeitos dos livros (Tópicos) para nos poupares maçadas, que responder senão que percebemos nenhuns existirem onde tu vês tantos? Demais confirma-me esta opinião a autoridade de M. Túlio que, se formasse desses livros o mesmo conceito, nunca transmitiria o seu conteúdo a Trebácio, nem Quintiliano, homem de critério severíssimo, seguiria Cícero, como intérprete de Aristóteles, na exposição dos lugares».


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