3. Teixeira de Pascoais e Miguel de Unamuno no seu epistolário

É de Nova Lisboa, na interior de Angola, que nos vem este livro, sem anúncio nem pregão, com a naturalidade do ar que se respira. Social e literariamente, a sua publicação é um acontecimento digno de apreço: socialmente, por ser um testemunho vivo da unidade territorial da nossa cultura, assim na iniciativa, que se não temeu das distâncias e das adversativas, como na efetivação, que se fica devendo à grata compreensão do Dr. Fernando de Sá Viana Rebelo, presidente da Câmara Municipal de Nova Lisboa, a cujas expensas corre a edição; literariamente, pelo acesso que dá ao conhecimento da mentalidade de duas individualidades, cada uma das quais exprime a seu modo uma maneira pessoal e irredutível de se ser homem e de se ser escritor.

Pelo teor, este epistolário não tem o alvoroço das confidências íntimas nem a novidade das informações. Pascoais expandiu-se reiteradamente na admiração pelo “altíssima espírito de inconfundível poeta e inconfundível escritor” de Unamuno, e quando fala de si é como que para si mesmo, com sinceridade, mas sem efusão; Unamuno, pelo contrário, dialoga, como sempre, “de esto y de aquello”, mas o que de si disse, das suas ideias e dos seus projetos literários, não tem, verdadeiramente, o sabor do inédito. Uma vez mais, as suas cartas de agora acrescentam-se às já numerosas vindas a público, todas confirmativas da perfeita entidade do epistológrafo, do homem do escritor, ou mais precisamente, do pensador, sempre o mesmo, quer se exprima por solilóquios ou por diálogos vivos e diretos, quer pela pena na mão, em páginas destinadas ao público anónimo e distante. O salpico de uma ou outra alusão a acontecimentos políticos e o desembaraço de alguns juízos, literários e pessoais, os quais estão a pedir o rodapé das anotações elucidativas, despertam a curiosidade, mas o atrativo capital deste epistolário é de ordem psicológica, pela franqueza e transparência da individualíssima maneira de ser dos dois correspondentes.

A primeira particularização que logo os separa procede da atividade operativa do pensamento. Pascoais sente, pensa e escreve por surtos e intuições imediatas, mais atento ao intuído do que à sucessão e conexão lógica dos pensamentos sucessivos, ao passo que Unamuno, incomparavelmente mais intelectual, douto e doutrinante, é o pensador na posse de uma atitude fundamental, que explicita diversamente mas sem abandono da coerência consigo mesmo e com as exigências do pensar que ambiciona convencer. Um e outro pensaram e escreveram como se a poesia e a filosofia fossem irmãs gémeas, “si es que no la misma cosa”, precisou Unamuno, para quem “la filosofia, como la poesía, o es obra de intración, de concinación, o no es sino filosoferia, erudición seudofilosófica”; no entanto, da obra de Pascoais, essencialmente poemática, isto é, constituída por poemas singulares, que são intrinsecamente unidades irrepetíveis, não pode extrair-se uma “filosofia” com densidade e coerência, ao passo que das páginas de Unamuno se pode coordenar, como aliás já se fez — com que êxito e rigor não importa agora considerar — se não uma “filosofia” pelo menos o “filosofar” categórico e rotundo do seu espírito vivente e concreto de “hombre de carne y hueso que se dirige a otros hombres de carne y hueso”.

A diferenciação da atividade operativa do espírito veio juntar-se, e por forma mais radical e decisiva, a diversidade da maneira com que cada um dos dois amigos se situou no mundo e o referiu à própria consciência pensante e atuante.

Em Pascoais, é manifesta, intensa e profunda, a compenetração com o ambiente natal. Num passo, Unamuno como que acusa certa ligação à índole da gente basca, mas as suas cartas, como a sua obra, não têm raízes terrantesas, assim como o seu pensamento sempre voou fora e acima de cercados doutrinais e de regionalismos territoriais. Em Pascoais, pelo contrário, a inspiração e o mundo poético são radicalmente terrígenos, colhendo na paisagem amarantina o alento despertador e a própria matéria da criação. A si mesmo se julga e designa de “poeta obscuro do Marão”, e foram “as terras do Tâmega e do Marão”, que se lhe tornaram em “querida e maternal paisagem”, a qual lhe nutriu a sensibilidade, conformou a gestação do pensamento, configurou as imagens e metáforas e, também, lhe confinou o horizonte: “Outrora”, escreveu no Duplo Passeio, “o ermo do Marão comovia-me até às lágrimas. Era a própria alma da serra introduzida, em mim, e transmudada em ignoto sentimento”.

Ao contrário de Pascoais, em cujo espírito a paisagem amarantina se infundiu e introverteu dominadoramente, em Unamuno era o seu “eu”, irredutivelmente individual, que se extrovertia, quase autolatricamente, nas paisagens que o estimulavam, pela incoercível necessidade de se ver a si mesmo. Para Pascoais, a bem dizer, existiu somente uma paisagem, a das “terras do Tâmega e do Marão”, ao passo que para Unamuno houve muitas e diversas, a ponto das impressões de espectador e de viandante terem lugar acentuado no conjunto da sua obra. Em todas, porém, se acusa, radicalmente, o mesmo sentido da visão e da estimativa, que o próprio Unamuno assim exprimiu em 1885: “no sé apreciar la naturaleza más que por la impresión que en mi produce”.

Recorda esta frase Manuel García Blanco, duca i maestro dos estudos unamunianos, no prólogo da coletânea de páginas de Unamuno a que pôs o exato e expressivo título de Paisajes dei Alma, e da sua plena vigência, vinte e quatro anos -depois dê a ter escrito, dá mostra o passo da carta (IX) a Pascoais, no qual é, afetivamente, que Unamuno recorda o “encanto de ese rincón” onde vivia o amigo e do qual poderia falar “como de cosa íntima y que he sentido de cerca, (...) de su `santa janela' y del `Tamega de sonhos e segredos'“, e lhe permitia entretecer o elogio de As Sombas “con mis recuerdos de Amarante, cuya sombra palpita en mi”.

A contemplação da “santa janela” do solar de Pascoais, em São João de Gatão, dera a Unamuno somente a compreensão de As Sombras, ao passo que para o poeta ela foi consubstanciação vital com a paisagem que sempre lhe esteve presente, a ponto da fidelidade ao seu ser autêntico ter sido fidelidade a ela mesma, e da compenetração mútua se transfigurar em mundividência e visão estética de sentido omnicompreensivo.

Ó paisagem da minha intimidade,

Que, dentro em mim, eu trago em terra e céus,

Tal como trouxe o mundo, em outros tempos,

 Deus, Antes de o modelar em sombra e claridade.

exclamou no Sempre, em termos reveladores do seu universo poético, cuja realidade lhe era dada com imediata presença, porque

... tudo o que se avista com os olhos

 o mesmo que se sente com a alma.

(Maranus)

e cuja expressão física se constituía pela palavra, ou mais propriamente pela imagem e pela metáfora, porque “se aparecer é existir, falar é ainda mais, porque é viver” (São Paulo).

Sentia-se, assim, genesicamente vinculado à paisagem amarantina, a ponto da compenetração lhe desvendar, “vagamente, (...) a identidade das coisas, primitiva”, e se tornar em “estado poético e panteísta, anterior ao cristão ou religioso”. Daqui, a peculiaridade do seu “estar-no-mundo” e a da estrutura do seu universo poético, uma e outra diversas das de Unamuno.


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