3. Teixeira de Pascoais e Miguel de Unamuno no seu epistolário

O mundo do pensador de Salamanca é, essencialmente, o do seu “eu” individual e irredutível, enquanto afirma, opõe e concita a vida autêntica, radical e integramente autêntica, ao “tu” e ao “nós outros” do mundo da cultura e da convivência, isto é, o mundo que o espírito humano acrescenta à realidade física que lhe é dada, num misto de acertos e de incompreensões, de esperanças e de desesperos, de verdades e de ilusões.

Daqui, a sua “consciência agónica” (García Bacca), de “pensador que tiene el sentido vivo de una realidad recién descubierta, pero carece de los instrumentos intelectuales necesários para penetrar en ella con la madurez de la filosofía” (Julián Marías) e cujo desígnio profundo não é exagero reputar de “missão socrática” (Miguel Cruz Hernández); e daqui ainda, consequentemente, a polarização do seu pensamento, mais despertador do que criador, na antitética concreta (Ferrater Mora) da existência pessoal do “hombre de carne y hueso”, cuja “desesperación esperanzada” (Laín Entralgo) o leva a considerar, dentre outros temas, o “sentimento trágico da vida”, a ideia da história, a soledade, etc.

Em Pascoais, pelo contrário, é escassa e débil a temática da existência humana concreta. Salvo em contados poemas intimistas, de lírico arrebatamento ou de elegíaco encontro a sós consigo mesmo, no “eu” do poeta eram os seres do seu mundo espectral e fantasmático que se davam com dominadora e total presença. Daqui, a poesia de Pascoais ser acentuadamente extravertida: radica na realidade externa e exprime a respetiva intelecção, a qual não é descritiva ou explicativa, mas poética.

Na consciência descritiva ou explicativa, que é a consciência do sábio, a realidade dada, descarnada de toda a subjetividade pessoal e considerada mediante conceitos claros e distintos, como dizia Descartes, é submetida às categorias do discurso lógico, isto é, à coerência e à consistência dos juízos. Na intelecção poética de Pascoais, a atitude é outra. Perante a realidade que captava, a sua consciência mental não descrevia nem pretendia explicar: dava-se totalmente ao que se lhe representava, nele se vertendo imediata e diretamente, sem intermediários conceptuais. “Onde o homem se encontra, é fora dele, ou no mar alto, como Camões, ou no deserto, como João, ou na estepe nevada, como Tolstoi, e até no meio dum caminho, como Paulo. Sim, o nosso espírito alimenta-se do que há nas coisas de ausente e abstrato, e divaga, no último distanciamento, tocado dum resplendor divino” (São Jerónimo e a Trovoada). Verdadeiramente, o seu pensamento ocorria, e não discorria, dando-se em surtos, com mais descontinuidade que sequência. Não sem alguma razão, observa Unamuno numa das cartas (XIII) que o pensamento poético de Pascoais — quando extravertido, acrescente-se —, adoecia “de una cierta indecisión vagarosa que no pocas veces le hace a usted alargar y prolongar las poesías, como si estuvieron sus ideas buscando forma, sin acabar de encontrarla”. Não sem alguma razão disse, e não com toda a razão, porque Unamuno não teve em conta que o estado poético de Pascoais se dava simultaneamente com o ato verbal, irrompendo um e outro espontânea e criativamente, sem a precedência de meditadas cogitações, porque, recorde-se, “se aparecer é existir, falar é ainda mais, porque é viver”, e o poeta é “o ser, quase divino, que faz com palavras o que Deus fez com água, terra e sol” (Poetas Lusíadas).

Daqui o poder magicamente genésico e representativo da palavra, a debilidade conceptual e o sentido ultrafísico, ou mais precisamente fantasmático, da sua poesia extravertida. “O indefinido sentimental”, confessou no Duplo Passeio, “como a visão da distância, é que nos comove intimamente, pois o nosso ser emotivo ignora os limites terminantes. Não é ele a imagem da amplidão? As ideias, sim, podemos desenhá-las num papel. Por isso, as desprezamos. Mas um sentimento, por exemplo, seduz-nos absolutamente, porque é incomensurável ou indefinido; e tanto o descobrimos em nosso coração como na montanha, no mar ou no deserto”.

Escreveu Unamuno, a propósito de As Sombras, que “la filosofia poética de Teixeira de Pascoais es una filosofia sombrosa — no sombría. Las realidades se dilu.yen y disuelven en sombra eu ellas, y las sombras se cuajan y consolidan en realidades. El sueño y la vela pierden sus linderos, derritiéndose uno en otro: la vida se convierte en sueño y el sueño en vida. Y así resulta una filosofia infantil y antigua, de ia infancia dei hombre y de la infancia de la Humanidad, de cuando el poeta era algo sagrado y espontáneo”. Embora se me afigure mais pertinente a designação de filosofia espectral do que filosofia “sombrosa”, penso que este juízo não abrange a totalidade da criação poética de Pascoais, sendo válido fundamentalmente para o mundo poético do Sempre, de As Sombras e do Maranus, como aliás o próprio Unamuno reconheceu, ao notar que as Elegias, “acaso lo más hondo, por más sentido, y lo más sencillo” que Pascoais escrevera (carta XV), exprimem, pela forma e pela temática, um mundo diferente do mundo subjacente aos poemas do Sempre, de As Sombras e do Maranus.

O mundo das Elegias é um mundo intimista, afetivo e introvertido, ao passo que o mundo do Sempre, de As Sombras e do Maranus é um mundo extravertido, espectral e fantasmático, de pura criação do génio de Pascoais, que dele fez um território poético único, inconfundível e sem paralelo na nossa temática literária.

Neste seu mundo poético, não se dão as coordenadas espácio-temporais do mundo sensível e os seres que o povoam são sombras, fantasmas, espectros, que surgem em constante transferência do físico para o espiritual, do visível pelos olhos ao presente pela imaginação, mediante a concretização mágica das palavras, sem subordinação à relação lógica da causa para o efeito. Na contextura mental, é um mundo construído com perceções mais ou menos subitâneas e vagas, e não com conceções mais ou menos pensadas, ou mais propriamente, com imagens meramente ideadas, cuja evocação não exige a presença dos objetos bem como as imagens concretas ou genéticas, isto é, abstraídas pela generalização. Era a estima, ou simpatia, que lhe revelava “o interior das coisas”, pois “gostar é ver por dentro; é penetrar materialmente numa região imaterial” (Duplo Passeio). Pela intropatia introduzia-se, assim, num mundo de valores e de essências imateriais; “à emoção profunda sucede o pensamento” (Duplo Passeio), pensava, e esse mundo dava-se-lhe em constante acréscimo de seres e de estados, não só pela intuição emotiva como pela polaridade das ideias, pois “quem vê a pureza, é porque vê a podridão” e “cada forma espiritual ou material afirma a sua existência” (Duplo Passeio).

Daqui, a sensação de incoerência, quando não de absurdo, para quem lê e pensa algumas imagens e metáforas que constroem o mundo poético de Pascoais com as categorias do pensar científico. Mundo autónomo e espontâneo, sem outra referência que não seja o espírito criador do poeta, os seres que o povoam são puramente poéticos, sem consistência real, apesar da intencionalidade objetivante que lhes reconhece e da transcendência que lhes atribui. É o mundo de Pascoais e somente do génio de Pascoais, cuja estrutura e modo de ser se não devem considerar sob os pontos de vista do homem de ciência e do filósofo. Contra o que o sábio e o filósofo afirmam, há ou pode haver crítica ou refutação, em virtude dos juízos não serem consistentes, isto é, compatíveis com a realidade das coisas, ou coerentes, isto é, compatíveis entre si, pelo rigor lógico, mas contra o que o poeta sente, intui ou pensa não valem as razões objetivas nem as contradições lógicas. É um mundo suscetível de consideração estética e psicológica e embora implique uma noética e se nutra de fulgurações ontológicas e de compenetrações valorativas, a sua existência não é intrinsecamente refutável, por se furtar às exigências inerentes às construções e explicações puramente conceptuais.


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