3. Teixeira de Pascoais e Miguel de Unamuno no seu epistolário

A sua original peculiaridade logo ressalta do teor das imagens e das metáforas e mais se destaca quando se compara aos mundos poéticos de alguns coetâneos, notadamente de Antero de Quental, de Eugénio de Castro e de Fernando Pessoa.

O mundo poético de Antero é, por excelência, o mundo dos problemas especificamente humanos, das lutas pelo direito e pela justiça, dos destinos últimos da consciência moral, das dúvidas metafísicas; o de Eugénio de Castro, no polo oposto, é o mundo construído e expresso somente com dados sensoriais, sob o compasso do bom senso — donde uma poesia de lavrante, alheia à problemática humana mas rica de tonalidades pictóricas, de ritmo musical, de modelação plástica; e o de Fernando Pessoa, um mundo solipsista, de quem somente se reconhecia no próprio eu e no complexo subtil dos estados e das relações subjetivas de que se apercebia. Diverso destes mundos poéticos, não o era menos do universo poético-filosófico de Unamuno, enlaçado por intuições “agónicas” da existência vivente. No íntimo, o mundo poético de Pascoais era um mundo refletido, estante e não deviente, no qual toda a concretização e toda a fenomenologia sensível lhe apareciam como “sombras” da realidade autêntica, muda, silenciosa, imóbil. Daqui, a sensação genésica de um mundo, do qual o seu espírito era a um tempo criador e adão, e uma poesia mundificante e não humanizante, essencialista, e não presencista nem futurante, tanto mais que a sua sensibilidade não apreendia o tempo como mudança e alteração, mas como lugar-onde do ontem, do hoje e do amanhã: “Estamos em contato com todos os séculos e lugares”, escreveu no São Jerónimo e a Trovoada. “O espaço e o tempo principiam e findam no meu ser. Em volta de mim, há a mesma extensão de passado e futuro, onde a minha fantasia, esse magnetismo, se propaga, recebendo mil impressões, que se iluminam e revelam à minha consciência”.

No plano das ideias e conceções dos dois correspondentes, este epistolário não alcança a importância que se poderia esperar. Unamuno refere-se, por exemplo, à raiz da sua conceção do D. Quixote, em termos que precisam, mas não enriquecem, as páginas da Vida de D. Quijote y Sancho, e Pascoais, apesar de haver acentuado a conceção da “síntese de Jesus e Pan, como revelação do genuíno, mas nunca lembrado sentimento religioso da raça lusitana” e de se referir ao Maranus como sendo “um romance em verso”, no qual julgava “ter revelado o que é a tristeza portuguesa”, não deu ao tema da saudade o relevo e a amplitude que o leitor atual esperaria. Qualquer que seja a explicação do facto — tentá-la levaria longe —, o pouco que da saudade disse nas cartas a Unamuno indica que Pascoais a reportava à “tristeza”, dando-lhe, portanto, raiz afetiva e não ontológica, e comprova que considerou o “saudosismo” como credo político, de humanização e de reencontro da alma portuguesa consigo própria, a ponto de o ter levado à “vida ativa” e “a pregar a saudade por terras do país”.

Pascoais aparece, assim, nas últimas cartas, como vate, que é a um tempo poeta e profeta, e se pouco esclarece acerca da estrutura e teor do novo curso do seu espírito, diz o suficiente para abrir a perspetiva das sondagens, no termo das quais, ao poeta que havia sido, revelador de um mundo imaterial e fantasmático, virá juntar-se o poeta prefigurador de uma metafísica da existência, cósmica e humana.

Introduzindo com alguma acessibilidade na individualidade própria dos dois amigos, este epistolário mal sugere o que a recíproca leitura dos escritos de um e de outro pode ter despertado na atividade literária e reflexiva de cada um.

Limitando o tema, jamais tentado, às vagas sugerências do epistolário, pode pensar-se que “a síntese de Jesus e Pan”, na qual Pascoais, em 1908, encontrava a “revelação do genuíno, mas nunca lembrado, sentimento religioso da raça lusitana”, não foi inteiramente alheia à “ressurreição e transfiguração de D. Quixote” operadas por Unamuno, cuja conceção do quixotismo, aliás, solicita o confronto com o poema “Maranus, a Saudade e Dom Quixote”, do Maranus. Em Unamuno, o vinco das conceções de Pascoais não é, porventura, tão sensível, mas pode pensar-se que o “saudosismo”, enquanto síntese da lembrança e do desejo, da recordação e da esperança, foi uma das raízes das reflexões do autor do Sentimento Trágico da Vida acerca da esperança, como sugere este passo de franco alor pascoisiano: “(...) me acuerdo de la finca de Pascoais y su ventana; me acuerdo del Tamega; me acuerdo Acordar-se es vivir. De las esperanzas de recuerdos pasamos a los recuerdos de esperanzas” (carta XVIII).

Qualquer que seja o significado real destas meras aproximações, cujo alcance não é esta a hora de aprofundar e de dilatar, bem como o das reflexões sobre a individualidade própria dos dois correspondentes, sempre este epistolário há de valer como testemunho vivo da amizade intelectual de duas personalidades inconfundíveis e separadas por fronteiras irredutíveis de modos de ser e de séculos de história, e que, sem embargo de haverem repensado e de terem dado novo alento aos sentimentos nacionais em que se criaram, encontraram na compreensão do espirito ibérico razões para mais se estimarem e melhor se conhecerem.

Figueira da Foz, Setembro de 1957


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