2. Os vencidos da vida, de Manuel da Silva Gaio

Agradeço à Direção da Associação dos Estudantes da Faculdade de Letras a honra que me deu, convidando-me para presidir a esta conferência. E agradeço-a cordialmente, porque desde logo a traduzi em termos da solidariedade que deve existir entre nós, professores e alunos, isto é, estudantes mais velhos e estudantes mais novos.

Para além desta emoção, por assim dizer profissional, o lugar que neste momento ocupo desperta no meu espírito outros sentimentos.

É que o conferente desta noite e o assunto da sua conferência gozam do raro privilégio de se prolongarem no mundo da memória, quer dizer, de ultrapassarem os domínios do fait-divers, criando associações indestrutíveis. Eu não sei, dentre os homens da geração do Sr. Dr. Manuel da Silva Gaio, quem, como ele, tenha as pupilas mais abertas e os ouvidos mais atentos para todas as vibrações do espírito e mais juvenilmente tenha reagido contra o reumatismo intelectual e contra as carapaças do hábito.

Na sua obra há sem dúvida literatura; mas emergindo do revestimento verbal, belo em si por vezes, há a vibração duma inteligência que, compreendendo e sentindo, generaliza também.

Poesia e filosofia coexistem na sua arte, e quer-se melhor prova que os poemas “D. João” e o “Santo”, onde a beleza da conceção e plano universal em que se colocam transcendem os estados emocionais, já de si complexos?

A sua arte foi mesmo em certo momento um processo de sementeira de um ideal, como na “Chave dourada”, o poema do neo-lusismo.

Desde 1890 até hoje, exprimiu sempre com alacridade, nesta pacífica e às vezes morna Coimbra, todas as vibrações da inteligência e do sentimento da beleza, tão extensamente que a literatura dos seus livros nos faz compreender as oscilações e inquietudes da cultura nacional nos últimos trinta anos.

O Dr. Manuel da Silva Gaio vai-nos falar dos Vencidos da Vida, isto é, dos homens que no século passado, depois da jornada romântica, mais honraram a inteligência e o primado das ideias sobre o sentimento.

Do primado da inteligência, disse, porque realizaram na arte, na crítica e na vida, esta façanha heroica do domínio da consciência clara, isto é, a razão, sobre o evanescente e o caprichoso episódico.

Eu sei que os “vencidos” estão hoje em eclipse no céu da nossa cultura: Oliveira Martins esquecido, Guerra Junqueiro maltratado, o Conde de Ficalho, objeto de citações, e o Conde de Sabugosa, encadernado em edições de bibliófilo. Só Antero e Eça de Queirós são vivos e atuais; mas não há sintomas patológicos na admiração que alguns lhes votam?

Sei tudo isto, sei mesmo que viveram no século XIX, e que nós vivemos no século XX e que os ideais de hoje, talvez com brutal revolta, se apresentam não como “vencidos”, mas como “vencedores”. Afirmaram, no entanto, uma posição moral e intelectual de amor pelas ideias, de respeito pelos homens, compreendendo — porque não dizê-lo? — Com indulgência o homo credulus e não sacrificando com dogmatismo ao homo sapiens.

É destes homens e da sua atitude em face da vida que o Dr. Manuel da Silva Gaio nos vai falar. Eu permito-me dizer-lhe, Sr. Dr. Manuel Gaio, que considero esta conferência uma gentileza para esta Associação. Um homem da sua estirpe não tem porém o direito de ser gentil só para alguns, porque as suas ideias e os seus juízos devem ultrapassar o âmbito dos seus ouvintes de hoje.

Foi para lhe conceder a palavra que me convidaram a ocupar este lugar.

Não o farei: não tenho coragem.

Quero apenas limitar-me a lembrar, a quem o vai ouvir, o dever de o escutar com a mais atenta das atitudes. Ouçamos, pois, minhas senhoras e meus senhores.


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