1. Problemática da saudade

Se há tema que de antigo, pelo menos desde meados do século XV, afete o pensamento dos portugueses, esse é o da significação, sentido e valor da saudade. O interesse de que tem sido objeto aparece predominantemente ligado às épocas em que “as razões do coração” são tão atrativas como “as razões da razão”; por isso, o século XIX, durante a quadra em que a conceção romântica da vida dominou o mundo da nossa arte e do nosso pensamento, foi por excelência o século dos temas saudosistas, como o século XVIII, principalmente na segunda metade, de índole racionalista e iluminista, foi o século em que a racionalidade abstrata, universalista e impessoal, desterrou a emotividade inerente à saudade e consequentemente os problemas que ela suscita.

A correlação com as situações espirituais epocais não significa, porém, que a temática da saudade seja una e constante.

Esteticamente, dos Cancioneiros a Teixeira de Pascoais, o poeta que como nenhum outro da nossa língua se introverteu espontânea e habilmente num universo de factualidade imaterial e poética, o mundo da saudade é virtualmente ilimitado e até indefinido; porém o que importa ao nosso objetivo presente não é a descoberta das espécies valorativas ou das expressões estéticas temporais, mas a problemática contida na saudade e respetiva significação filosófica.

Do conjunto da bibliografia portuguesa, brasileira e espanhola, assim em castelhano, como em galego e catalão, se colige que a temática da saudade tem consistido fundamentalmente na inquirição filosófica da origem e da semântica da palavra, na consideração do sentido privativo ou universal do respetivo conceito e na reflexão das consequências morais e sociais da atitude saudosista.

A inquirição filológica, de copiosa bibliografia e, porventura, a mais bem conduzida das inquirições respeitantes à saudade, atingiu alguns resultados que parecem definitivos e abrem passo à indagação propriamente filosófica. Assim, pode dizer-se que a palavra saudade tem por étimo longínquo o adjetivo e advérbio latino solu, o que equivale a dizer que nele flui a ideia de estar só. A ideia de estar só, porém, tanto pode ter sentido tópico, reportando-se ao sítio em que se está, como sentido psicológico, relativo ao estado de alma de se sentir só, pelo que o termo genérico solu se explicitou na particularização das ideias que exprimem o sentido da solidão e solitude, como solitas e solitudo, e o sentido da soledade, cujo étimo é solitudine, da baixa latinidade. Etimologicamente, soledade e saudade derivam da mesma base, pelo que se compreende que Amador Arrais, no século XVI, com purismo de filólogo, preferisse o termo “soedade” ao de saudade. O apuramento desta etimologia mostra que soledade e saudade remontam à ideia de isolamento e à do espírito refluir sobre si mesmo, tornando compreensível o facto de haverem sido empregados como termos sinónimos.

Não sabemos se o facto chegou a verificar-se na história do nosso léxico, mas sabe-se que no castelhano a nossa palavra saudade, suidade ou soidade de ascendência medieval, teve correspondência perfeita na palavra soledad, como testemunham o passo da égloga virgiliana em que Juan de Encina, em 1490, “canta la soledad que Castilla sentia cando los reyes iban a Aragon”, e a frase de Núñez de Reinoso, em 1550: “Soledad de Espalla siento”.

Não sabemos, repetimos, se chegou a verificar-se entre nós a sinonímia de soledade e de saudade, mas se isso ocorreu, deu-se somente como fantasia passageira, sem seguimento nem significação geral. A prova, e concludente, colhe-se em D. Duarte e em Gil Vicente: o primeiro, opinando antes de outrem que “este nome de suidade [é] tam próprio, que o latim nem outra linguagem, que eu saiba, nom é para tal sentido semelhante (...)”; e o segundo, colocado perante o facto de ter de exprimir o conceito de saudade em castelhano, inventando o termo de saludad e recorrendo ao de soledad, com o que mostrou a intraduzibilidade da nossa palavra por estes parónimos:

Matadme, señor padre,

que saludad de mi madre

me mata ansi como ansi.

Soledad tengo de ti

Heridea, hermana mia.

Encontramo-nos, assim, com o primeiro dado concreto a partir do qual começa a problematização da saudade, e este dado é a existência da palavra saudade como privativa do léxico português e galego, visto não ter correspondência como palavra nas demais línguas românicas, nem tão pouco nas anglo-saxónicas, o que inspirou a Garret os expressivos versos:     

Saudade!

Mavioso nome, que tão meigo soas

nos lusitanos lábios, não sabido

das orgulhosas bocas dos Sicambros.

O nosso objetivo consiste em extrair deste dado os problemas que ele encerra, deixando para outra oportunidade a reflexão acerca do método ou métodos com que os problemas descerrados melhor podem ser esclarecidos, bem como os resultados finais dos respetivos esclarecimentos.

O primeiro problema é de índole histórico-sociológica. Formula-se com a seguinte pergunta: Quando e porque se verificou no noroeste da Península, Entre-Douro-e-Minho e na Galiza, o aparecimento do vocábulo saudade e não noutra região peninsular ou de falar romance?

Sob o ponto de vista sociológico, a resposta não parece que seja alheia à celtização nem aos factores históricos que motivaram que em Entre-Douro-e-Minho, mais do que em qualquer outra região do atual território português, se tivesse operado a mutação do sentimento terrantês em sentimento nacional.

O segundo problema é já de outra índole. Relaciona-se imediatamente com o facto do regionalismo da palavra, e consiste em saber se o expressado pela palavra saudade é também próprio de luso-galaicos, ou dito de outro modo, se o idiomatismo do fonema é ou não expressão de um estado psíquico ou de uma ideia ou atitude mental também peculiares a luso-galaicos.

As respostas possíveis são fundamentalmente três.

Primeira: a saudade, como expressão e expressado, é coisa privativa das gentes nativas do noroeste da Península.

Segunda: a saudade é designação de um sentimento que “parece que (...) toca mais aos Portugueses, que a outra nação do mundo o dar-se conta desta generosa paixão”, como escreveu D. Francisco Manuel de Melo, no século XVII.

Terceira: a saudade é um fenómeno essencialmente humano Como vocábulo, é um idiomatismo privativo de luso-galaicos; no entanto, o que ela exprime é próprio da constituição psíquica humana e como tal exprimível por palavras de som e grafias diferentes.

Como dissemos, a determinação de uma resposta com pretensão de verdade, está fora do nosso objetivo atual; não pode, porém, prosseguir-se na inquirição da problemática sem se admitir, quanto mais não seja a título provisório ou hipotético, que uma das respostas tem mais probabilidade de ser verdadeira que as outras. Assim posta a questão, bastam os dados elementares da psicologia da vida afetiva para inculcar que a saudade é um acontecimento psíquico suscetível de se dar no espírito de qualquer ser humano Pode a consciência de uns ser mais sensível que a de outros à inadaptação das circunstâncias, ao contraste das situações vividas, à distanciação do mundo ambiental, ao recolhimento sobre si mesmo, à privação de bens ausentes e ao desejo de bens futuros; não obstante, é da própria natureza da vida emocional e da temporalidade da constituição espiritual o sentimento da conformidade ou desconformidade das situações sucessivamente vividas, e consequentemente a possibilidade do contraste da vivência de uma situação atual com a recordação da vivência ou das vivências de situações anteriores.


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Vamos corrigir esse problema