1. Problemática da saudade

Acontecimento puramente humano e oposto ao riso e ao choro, na medida em que estes tendem ao estabelecimento da comunicação entre pessoas, a saudade faz parte da vida emocional, o que implica dizer que é uma das maneiras por que a ipseidade de cada um responde ao mundo que o circunda ou à situação em que se encontra. O duvidar, assentir, o demonstrar são atos da consciência teorética, os quais se desenvolvem no plano da impessoalidade e da subordinação da razão lógica às condições objetivas ou de razão suficiente que lhe são presentes: o ser saudoso, pelo contrário, pertence à categoria dos fenómenos psíquicos que importam a tomada de posição perante as qualidades dos objetos circundantes e cujo ponto de partida irrompe do mais íntimo da personalidade. A saudade não se dá se a consciência vive plenamente o mundo que lhe é dado e a totalidade da experiência anteriormente vivida flui na situação presente sem contraste nem desvios; como isto é supremamente improvável e difícil, segue-se, consequentemente, que todo o ser humano — e só o ser humano, pois no ser divino é inconcebível a saudade — é suscetível de estar saudoso e, sobretudo, de ser saudoso.

Dito de outro modo, isto significa que todo o ser consciente e temporal é suscetível de estabelecer uma relação valorativa entre a situação que atualmente vive e a situação outrora vivida e de a sentir como desvio agradável ou desagradável do fluir da existência; e até pode acrescentar-se que as diferenças individuais são profundas, dado que cada qual é suscetível de ser afetado diversamente, já em virtude da nativa constituição psíquica e da ipseidade da própria experiência vivida, já em virtude das propriedades dos objetos, que valorativamente se apresentam com diversa capacidade de atração e de repulsa, de apreço e de desapreço.

É neste terreno da vida psicológica que se dá a saudade do qual se nutrem alguns estados psíquicos que têm por nota comum a solitariedade, como sejam a solidão contemplativa do eremita, a nostalgia do desterrado e a soledade do desconsolado. Acompanha-se normalmente de um halo de tristeza, mas o ato saudoso também pode trazer consigo a sensação de alívio, como disse Gil Vicente:

Oh tristes saudades minhas

 nestas montanhas maninhas

que descanso é o que me dais?

Do que vimos dizendo resulta que o terceiro problema consiste em isolar a saudade do que lhe é afim, em ordem ao estabelecimento de uma descrição precisa, e, podendo ser, de uma definição exata. Daqui, o desdobrar-se este problema em dois sentidos diversos mas convergentes: o metodológico e o histórico.    

O sentido metodológico implica, como é óbvio, a escolha de um método. Oferecem-se vários com mais ou menos prontidão, mas creio que a todos se sobreleva, pelo menos de início, o da descrição fenomenológica da consciência saudosa. É o conhecimento do “estar saudoso” que tem de preceder o conhecimento do ser saudoso e do eidos da  saudade, dado que a saudade é verbo e é substantivo, é estar e ser, modo e essência, egofania e alofania, isto é, manifestação do eu e manifestação no eu; e este conhecimento apreende-se principalmente na fenomenologia da saudade, quer pela observação introspetiva, quer na análise extrospetiva, notadamente nas expressões poéticas das literaturas gaélica, galega, portuguesa e brasileira, e no comportamento resultante de algumas exaltações mórbidas, designadamente de emigrantes e de enlutados. A análise fenomenológica permitirá determinar as componentes do ato saudoso, como sejam a renúncia, a nolontade, a sensação de isolamento, o desejo de bens ausentes e anteriormente vividos, e a tristeza. Isoladamente consideradas, as definições conhecidas da saudade não dão nota de todas estas componentes; por isso o resultado da análise fenomenológica não só será mais completo, senão que será mais preciso.

O sentido histórico consiste na investigação das considerações filosóficas suscitadas pelo conceito de saudade — o conceito implícito, bem entendido, e não o do fonema saudade. É, assunto inteiramente novo. Tem-se investigado, e por vezes com finura e saber, a traduzibilidade da nossa palavra saudade por outras palavras do vocabulário latino, designadamente desiderium, que etimologicamente significa “deixar de ver”, e dos vocabulários românico, anglo-saxónico e árabe; porém, a investigação histórico-filosófica da ideia está por fazer e estamos seguros que dará resultados esclarecedores. Assim, por exemplo a análise dos conceitos de desiderium em Santo Agostinho e em Espinosa, notadamente na definição da Ética, a reflexão de Locke no Livro II do Ensaio sobre o Entendimento Humano acerca da Uneasiness, e as expressões literárias, as compenetrações místicas e as reflexões filosóficas acerca da solitude, conduzirão a aproximações significativas, e muito principalmente a noção de Uneasiness, que Locke definiu como “o desejo fixado sobre algum bem ausente”, cuja tradução usual por inquietude Coste considerava imprecisa e que um português traduziu por saudade no final do século XVIII.

O alcance máximo da indagação orientada com sentido fenomenológico e histórico-filosófico cremos que virá a ser a apreensão da intencionalidade da saudade, ou por palavras mais precisas, o correlato intencional da consciência saudosa, ou seja a comunicação da consciência com outras consciências ou com outros seres ou estados ausentes.

É-se sempre saudoso de, isto é, na saudade dá-se sempre a consciência de algo ausente e cuja presença se apetece com “desejo melancólico”, como admiravelmente disse Garrett, e daqui decorre o quarto problema, relativo ao ser a que o objeto da saudade se reporta. É, pois, um problema ontológico, e este problema procede do facto de na saudade se dar, a um tempo, o ensimesmar-se e o exsimesmar-se, ou por outras palavras mais adequadas ao sentido noético, a presentação atual de um estado ou de uma situação indesejável ou menos agradável, e a representação de um estado, de uma situação, de objetos ou entes conhecidos em experiência transata e que se desejariam revivescentes com vívida comunhão afetiva.

Por esta característica, a saudade não é identificável de maneira alguma à reminiscência no sentido platónico, dado que o saudoso se coloca emocionalmente perante o seu mundo pessoal e vivido e não perante o mundo impessoal de ideias e de formas objetivas, indiferentes, intemporais, espaciais e universalmente válidas. Os objetos a que se reporta a consciência saudosa têm valor real e não puramente conceptual ou explicativo, e por isso se verifica no ato saudoso o desprendimento, quando não evasão, da presentação objetiva atual, pela apetência mais ou menos veemente do ser ou maneira de ser, representada como ausente, envolvendo a representação, a par de elementos afetivos, a referência expressa a algo existente ou que existiu fora e independente do sujeito.

Consequentemente, no ato saudoso dão-se a existência do ser para o sujeito e a existência do sujeito para o ser, ou por palavras expressivas do vocabulário escolástico, a coisa de que há saudade é, sob certo ponto de vista, esse in, isto é, acontecimento que se dá numa consciência individualizada, e sob outro, esse ad, isto é, relação intencional com o objeto ausente e desejado. Por isso, se o ensimesmar-se da saudade implica a determinação categorial da vivência saudosa no conjunto da vida psicológica, o seu exsimesmar-se implica o complexo problema das formas, natureza e lugar ontológico dos objetos que o saudoso desejaria atualizados.


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Vamos corrigir esse problema