2. Elementos constitutivos da consciência saudosa

A saudade propõe numerosos problemas, designadamente de filologia, de história literária, de psicologia étnica, de descrição psicológica, de análise filosófica e de interpretação metafísica, cada um dos quais põe em jogo factos diversos e objetivos diferentes. O nosso intento vai consistir somente em indagar a resposta à seguinte pergunta: o que é próprio da consciência saudosa?

O quê desta pergunta carece de ser delimitado, em ordem a cingir-se com a possível clareza o assunto. É que a consciência saudosa, já em si mesma e nos seus conteúdos, já como ato da vida emocional nas relações com outros atos e estados, pode ser objeto de indagações relativamente independentes, conduzidas, aliás, com metodologia diversa.

Normalmente, a vivência da saudade não se dá a conhecer por atos fisicamente expressivos, como a alegria, que se expande em riso, a mágoa, que se manifesta com soluços e lágrimas, a cólera, que se traduz em gestos arrebatados e violentos. Como todos os afetos e estados da vida emocional, a saudade acompanha-se de manifestações corporais, mas não são estas que caracterizam a consciência saudosa nem por seu intermédio se pode aceder ao que é peculiar e próprio da saudade. Nas formas avassaladoras da saudade, a consciência devém melancólica, comportando-se o saudoso como ser ensimesmado e distante do que o circunda, mas esta expressividade não é privativa da consciência saudosa, porque se dá também noutros estados, designadamente na preocupação expectante e na consciência amargurada e solitária.        

Daqui, por um lado, a necessidade de se discriminar a saudade dos atos da vida emocional que lhe são próximos, e, por outro, a exigência de uma atitude metodológica que se aplique principalmente ao exame intuspetivo da vivência da saudade, em ordem a apreender o que está aquém dos atos expressivos.       

pois, para a constituição da consciência saudosa enquanto consciência saudosa, que cumpre dirigir a indagação, pondo de lado outras indagações, designadamente as que respeitam ao porque se é ou está saudoso, ao de que se é saudoso, e ao como se é saudoso.      

A saudade é um acontecimento exclusivamente humano; o ser divino, por essência ato puro, não pode ter saudades, por ser inconcebível que sinta o presente como perda de bens outrora fruidos, e o animal, também as não pode ter, porque o seu psiquismo é restrito ao sensível e ao que lhe é presente com singularidade concreta. A saudade dá-se, pois, somente na consciência humana enquanto consciência que vive o tempo como coisa sua própria, e o seu acontecer apresenta-se simultaneamente como estado psíquico intransferível e como correlato com presencialidades que transcendem a consciência. Por outras palavras: a saudade dá-se em e é sempre saudade de algo, isto é, o acontecer da saudade é um acontecer que a consciência íntima pode comunicar mas não transferir para outrem, e cuja vivência se acompanha da presença espiritual de seres ausentes ou de circunstâncias e estados transatos.           

Na realidade vivida habitualmente, a saudade constitui como que um todo, mas este todo somente se apreende com alguma clareza depois de conhecidos os elementos que o integram. Os testemunhos literários da vivência da saudade, principalmente de poetas, mostram que uns acentuam predominantemente o em da saudade, e portanto transmitem de preferência manifestações de desejo e de afetividade, como a tristeza, a solitariedade, a nostalgia, enquanto outros, mais raros, são impressionados pelo de da saudade, e portanto transmitem intuições ontológicas acerca do que se é saudoso e da ausência que se deseja presencial e viva.

A razão disto procede do facto da saudade exprimir originariamente, como todos os atos emocionais, uma tomada de posição da consciência perante seres, situações ou circunstâncias com que se defronta, e do “algo” de que se é saudoso comportar uma multiplicidade de consistências e de gradações. Daí, lhe serem inerentes três elementos constitutivos: o ser subjetivo ou eu pessoal, os seres e situações postas como já vividas, e o correlato do eu pessoal com tais seres e situações.

O estar saudoso exprime psicologicamente um estado em que a consciência opõe ao que lhe é dado na experiência patente a preferência de algo já vivido e ausente. O passado é representado em conexão de algo atual e presente, cuja dimensão afetiva é inferior à dimensão afetiva do passado representado.

“Isto faz-me saudades”, diz o povo, e neste dizer claramente se deixa ver a conexão existente entre a presentação e a representação: se a consciência saudosa se insere necessariamente em algo atual e efetivamente presente, a intensidade da saudade varia na medida em que se opõem às qualidades e propriedades afetivas da presentação as qualidades e propriedades afetivas da representação.

Ter vivido e conservar um núcleo de representações ligadas emotivamente entre si, são condições primordiais e indispensáveis da saudade; por isso a saudade se não dá na consciência incipiente da criança e o velho é mais propenso a viver saudosamente que o adulto. Somente a consciência formada, isto é, polarizada em torno do eu pessoal, pode ter saudades, e a razão procede da circunstância da consciência saudosa se inserir e compenetrar do tempo vitalmente vivido, sem o qual não pode haver saudades.

A esta luz, a saudade aparece como forma particular do comportamento perante o presente. A peculiaridade da temporalidade que lhe é própria surge com alguma clareza quando se compara com a consciência apaixonada, que é a consciência imersa no presente imediato, com a consciência expectante e esperançada, que é a consciência que fita o futuro, e com a consciência erma, que é a consciência que se sente solitária e desamparada, isto é, sem raízes em qualquer sítio do espaço e sem conexão com qualquer das dimensões do tempo.

Opondo o transato ao que é percebido com atualidade, a consciência saudosa nem prolonga o presente que ela vive nem antecipa o futuro que ela deseja; a temporalidade que lhe é própria é retrotensa e não pro tensa. A saudade não exclui o futuro, como claramente mostra a frase popular de as saudades “só à vista terem fim” e até pode dar-se o receio de que o futuro proporcione bens ou situações, cuja fragilidade gere a suspeita de que deles venha a ser-se saudoso; no entanto, o tempo próprio da saudade e no qual ela se insere é o tempo vivido e concretizado em representações evocativas, sem as quais a saudade se não pode constituir.

É que assim como nos podemos comportar diante da presença de alguém como se estivesse ausente, assim também nos podemos comportar perante seres ausentes ou situações transatas como se estivessem presentes. A saudade, com efeito, nasce do contraste que a consciência estabelece entre duas realidades: a que é dada pela perceção atual e a que é dada pela evocação retrospetiva. A perceção atual dá a realidade que se vive, e a evocação, a realidade que se viveu, cuja projeção sobre a realidade atual estabelece como que a medida da perda que se sofreu e se desejaria recuperar.

A projeção sobre o presente, ou seja a representação da ausência como perda ou privação, além do tempo vivido, requer que se não captem no objeto da perceção atual qualidades cujas dimensões afetivas se arreigaram no mundo da subjetividade. Propriamente, não há coisas que desprendam saudades, tal como há coisas que exalam repugnância e metem medo, porque a saudade se vincula ao ser íntimo e não a materialidades e exterioridades. Não obstante, não pode constituir-se sem ser despertada pela presença de coisas atuais desprovidas de certas qualidades, cuja falta suscita a representação de algo ausente acompanhada do desejo de a tornar a ver ou reviver com atualidade.


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