3. Compleição do património português

Ditaram as circunstâncias que eu passe no Brasil o dia comemorativo de Camões e quis a Direção do Gabinete Português de Leitura honrar-me com o convite para usar da palavra nesta sessão e nesta sala, que empolga pelo ambiente e cativa pelas tradições. Aceitei o convite sem hesitação e com reconhecimento, principalmente porque ele me proporciona a satisfação de trazer a esta ara do nosso patriotismo a minha oferenda de estudioso da cultura portuguesa e de devoto da confraternidade luso-brasileira.

À satisfação pessoal antepunha-se, porém, o cumprimento do dever. Tornava-se necessário que eu suspendesse por alguns dias as lições que interrompi em Coimbra e agora continuo em São Paulo, mas os meus ilustres e prezados colegas paulistas não só consentiram que eu me deslocasse até junto de vós como me animaram a entrar em relações diretas com mestres e estudantes das Faculdades de Filosofia da Universidade do Brasil e da de Minas Gerais.

Sinto-me, pois, plenamente à vontade para me congratular convosco neste dia festivo, em cujo simbolismo se fundem intimamente a glorificação do nosso passado, pela evocação das gestas da independência e dos descobrimentos, e o anelo do futuro, pela esperança de que se não interrompa nem quebrante a ação civilizadora de Portugal.

Camões é de há muito, pelo plebiscito unânime e constante das gerações, o símbolo da nossa consciência patriótica, mas permiti que eu quebre a tradição deste dia, não me ocupando propriamente da obra camoniana nem da sua significação nacional e universal, mas do que nutre e deu vibração coletiva à inspiração d'Os Lusíadas.

É que estar à vontade não é sinónimo de restituição das condições necessárias às realizações da vontade. Fora do ambiente que quarenta anos de continuidade tornaram indispensável ao meu trabalho de investigação e de reflexão, sem o auxílio das minhas notas e sem o socorro dos meus livros, um elementar escrúpulo inibe-me de vos falar de Camões, mormente na terra em que Joaquim Nabuco e Afrânio Peixoto implantaram com mestria e solidez os estudos camonianos, erguendo-os desde logo a uma altura que obriga e responsabiliza. Não me sofre a consciência que recorra ao que já disse e escrevi acerca da cultura e do génio do nosso poeta nacional, e não é digno da respeitabilidade desta casa centenária a improvisação de generalidades sem consistência nem densidade. Ocupar-me-ei, por isso, de um assunto que não é especificamente camoniano, mas sem o qual se não compreende cabalmente a épica camoniana, e que me foi sugerido pela minha atual experiência de transterrado.

Transterro é, com efeito, o termo que perfilho por mais significativo do que sinto e penso da minha situação atual. Encontro-me fora de Portugal, mas falo a língua que lá falaria, levo a vida que lá levaria, continuando o mesmo labor, com a mesma aplicação e o mesmo ideal de exatidão e de clareza. A terra que piso é outra e outra é a compleição do comum das gentes que a habitam, as quais me sugerem que, sendo forasteiro, não sou estranho, porque se me tornou afetivamente fluida a fronteira do portuguesismo e da brasilidade.

No que toca às realizações materiais, vejo coisas pensadas com originalidade e em grande, levadas a cabo com tal dinamismo e sentido da modernidade que assombram. No que respeita à atividade científica, a par de assuntos que desabrocham, assisto à plena maturação de outros que em Portugal mal frutificam, e, no ideal cultural, dou fé da existência de tendências próprias, fortemente impregnadas de espírito nacionalizante, o que aliás não exclui de maneira alguma a não menos viva ambição de universalidade, sem a qual as criações do pensamento jamais perdem o acanhamento provinciano.

Em suma, coisas análogas, diferenciadas ou radicalmente diferentes das que constituíram e constituem o mundo em que me criei e se me tornou habitual, mas vendo e ouvindo, aprendendo e ensinando, que é muitas vezes uma forma de aprender, confirmei algo do que sabia, retifiquei juízos que tinha por exatos e sobretudo alarguei o campo da sensibilidade e da reflexão.

Fico devendo aos mestres brasileiros da sociologia e da antropologia cultural a iluminação de alguns problemas que nos tocam pela raiz, e principalmente a incitação ao estudo de alguns sentimentos e de algumas estruturas da compleição portuguesa. Impressionou-me, em particular, a índole audaz, assimiladora e integrativa da capital bandeirante, cuja alma, tensa com mais vigor para o Brasil que se constrói do que para o Brasil que se continua, também concorreu para me inculcar, não direi por contraste mas antes por diferenciação, a reflexão sobre a índole e as tendências do patriotismo português.

Este será, pois, o assunto de que me ocuparei, e que considerarei à luz dos ensinamentos da história, da vida de terrantês que tenho levado e da de transterrado que agora levo acidentalmente, mas lançando também, e principalmente, os olhos para a variada fenomenologia do comportamento dos portugueses fora do torrão natal, o qual não raro se patenteia como testemunho flagrante das nossas qualidades, dos nossos defeitos e, sobretudo, das nossas virtualidades.

Saber porque se ama e quer a Portugal e em que consiste o amor que lhe votamos não são coisas tão óbvias e simples como à primeira vista parece. Não direi que cada português tenha uma ideia pessoal do que é e do que significa o nosso país, mas não hesito em dizer que os portugueses não coincidem na mesma conceção acerca de Portugal. Compreende-se.               

A elaboração de um conceito que englobe a totalidade da nossa existência nacional é um intento difícil e eminentemente falível, dado a realidade portuguesa ser múltipla, na sucessão das gerações, e diversa, na pluralidade e no matiz das suas manifestações. O critério mais instrutivo é o que a história propõe e a reflexão crítica da conceção da vida julga. Por si só, a história aconselha mas não decide, por várias razões, a começar nesta muito simples e óbvia: o ter sido não justifica sem mais o ser e o dever-ser. No entanto, sem os ensinamentos da história o juízo não alcança densidade, porque assim como julgamos os indivíduos pelas ações, assim também conhecemos a índole dos povos pelas manifestações da sua atividade e do seu comportamento no decurso do tempo.

A história dá-nos, assim, simultaneamente, o testemunho real e as dimensões existenciais da compleição da alma dos povos, da capacitação, qualidades e defeitos que a constituem, da hierarquia de valores que a singularizam, das tradições que a mantêm, das aspirações que a alentam e das vicissitudes dos ideais que a orientam. A análise dos sentimentos coletivos não escapa a esta lei constitutiva da cultura, mas importa tais dificuldades e escrúpulos que a sua aplicação se torna extraordinariamente complexa e delicada. Basta atentar momentaneamente na massa de factos que é necessário indagar e considerar, na exigência de equanimidade e no dever de evitar a simplificação de juízos, alguns dos quais, infelizmente vulgares hoje em dia, tendem a interpretar, quando não a estimular, o exercício da vida pública como guerra e extermínio de fações ou de classes. Sem perder o contato com os ensinamentos patentes pela história, as circunstâncias forçam-me, no entanto, a situar-me predominantemente no terreno da fenomenologia do comportamento.


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