3. Compleição do património português

A grande maioria dos portugueses vive o amor pátrio como dado intuitivo e imediato, identificando-o normalmente com o amor à terra em que nasceram e onde lhes decorreu a primeira educação. Assim considerado, este amor pátrio gera um patriotismo localista e constitutivamente emotivo. O seu horizonte físico mal vai além da aldeia ou da vila natal e o seu horizonte moral é definido pela constelação de sentimentos que tem por centro a casa familiar. Constitui a forma mais simples, tenaz e generalizada, da fenomenologia do nosso sentimento patriótico, sendo suas notas características a visão estática e a saudade, por assim dizer vital.

Se não erro, é o amor pátrio assim entendido, ou melhor assim sentido, que explica em grande parte a constituição da nossa vida civil com base no agregado familiar, o desinteresse pela vida pública como atividade de primeira plana, e a instabilidade de todas as organizações de significação estritamente política. Nunca faltou ao povo português o instinto político, isto é, a intuição do que importa vitalmente à sua existência como grei. A nossa autonomia política, das mais antigas da Europa, e a continuidade da nossa existência coletiva, sem os colapsos da história de alguns grandes povos, que possuindo o dom da imaginação e sabendo pensar não sabem agir, proclamam bem alto o instinto político dos portugueses. Nunca precisamos, em momento algum da nossa vida civil, de recorrer ao exemplo alheio para sabermos o que nos é essencial — o que aliás não quer dizer que a organização e efetivação do que temos por essencial se não haja feito por vezes de olhos postos no exemplo alheio ou nas ideias de outros. A par de uma atividade de Portugal, isto é, do nosso génio nativo, há também, e em larga medida, a expressão em Portugal da assimilação alienígena. Raras vezes ficamos indiferentes aos ventos do espírito, embora nem sempre os tivéssemos deixado soprar como mais conviria à boa saúde mental e à temperança moral. Política e intelectualmente, porém, ao convívio das associações livres da cidadania e às conexões mais ou menos abstratas com o pensamento forasteiro preferimos instintivamente o gosto de viver à parte e a nosso modo, conferindo à família, como agregado que polariza quase todos os afetos e aspirações, a ascendência e o primado que certos povos conferem a outras associações de interesses, de ideias ou de profissão.

Esta maneira de sentir Portugal, que radica numa atitude tendencialmente conservadora e mais ou menos desconfiada das novidades, concorreu e continuará a concorrer poderosamente para dar fisionomia própria à nossa existência coletiva, que não depende de circunstâncias ou de conveniências alheias mas única e exclusivamente de nós mesmos e do plebiscito que tem por foro a intimidade da consciência.

Sem este patriotismo localista, fortemente impregnado de sentimentos familiares, em geral mais polarizados em torno da dedicação materna do que da ascendência paterna, não se compreende a persistência do nosso espírito nacional, assim no que tem de singular, que é a unidade de comportamento nas mais diversas e remotas paragens, como no que tem de limitado e de suspicaz no exercício e na desenvolução. De horizonte estreito, fiel e persistente, mais propício a gerar homens de ação e de palavra que doutrinários, é deste espírito que cumpre partir para a conceptuação do nosso patriotismo.

Três componentes fundamentais encontro na sua estrutura, a saber: a constância multissecular, o substrato afetivo e a tendência saudosista.

Com Ricardo Severo penso que a nossa compleição remonta a tempos proto-históricos e que os castros e citânias ao norte do Mondego foram as suas primeiras expressões de agregação social. Na sequência do juízo do ilustre patriota e repúblico, a cuja memória rendo profundo respeito, as minhas indagações levam-me a admitir como seguro que a génese e constituição da nossa índole se foram produzindo à medida que o comunitarismo tribal, baseado na consanguinidade, se desagregou com a sedentariedade, com a monogamia e com o processo de individualização da consciência.

Tudo indica a existência de um fio de continuidade da tribo castreja dos tempos proto-históricos aos municípios, às vilas e póvoas da ocupação romana e destas às comunidades agrupadas em torno das igrejas cristãs, e que foram a raiz das freguesias. Nesta sucessiva organização do conviver social nota-se o alargamento, sob o ponto de vista da extensão, e a maior complexidade, sob o ponto de vista da especialização das funções e do trabalho, por forma que se é irresistivelmente levado a ter por certo que sem a romanização e cristianização outra seria a compleição das gentes que habitam o território de Portugal. Sem estes dois decisivos acontecimentos, que modelaram para sempre a nossa alma e a nossa estrutura mental, não é possível avaliar como se transformaria o clã consanguíneo dos povoados proto-históricos em circunscrições territoriais, e as consciências indiferenciadas e aturdidas pelo pavor demoníaco e pelo discorrer mítico se transmudassem, primeiramente, em indivíduos dotados de uma linguagem que lhe desenvolvia a mentalidade lógica, depois, em sujeitos de direitos e de obrigações constituídas por atos de vontade autónoma, e por fim, em pessoas morais, com o sentido da responsabilidade da vida e da significação transcendente da existência.

A nosso ver, o estudo sociológico do conviver das sociedades castreja, romanizada e cristã, correlacionado com a persistência fundamental da mesma constituição física, inculca fortemente o convencimento de que as grandes mutações operadas no atual território português foram essencialmente de ordem cultural e que o anelo de viver a seu modo, e à parte, é uma das mais antigas características das populações ao norte do Mondego.

Sendo assim, a constituição autónoma do Estado português apresenta-se como ditame histórico e não como produto fortuito de circunstâncias propícias ou como remate feliz da ação pessoal do nosso primeiro monarca. Concomitantemente, o sentimento da nacionalidade, ou mais propriamente o anelo de viver à parte e a seu modo, em relação aos povos vizinhos, seria anterior à constituição da monarquia independente; e consequentemente, teria sido a compleição que deu origem e nutriu o esforço que se rematou na independência do Estado, e não o exercício do Estado político independente que gerou o sentimento da nacionalidade.

O patriotismo sentido pela grande maioria dos portugueses, ou seja a emoção polarizada em torno da terra natal e que se nutre do conjunto de sentimentos inerentes ao agregado familiar, tem, assim, a mais veneranda ascendência, contando-se pelos dedos as nações europeias onde é possível seguir tão longe e tão fundo as raízes da sua existência histórica e a estrutura da sua alma coletiva. Com o testemunho límpido de muitos séculos de história e com a constância ininterrupta da mesma sensibilidade e das mesmas reações perante os acontecimentos decisivos, os portugueses podem dizer que o seu patriotismo lhes é tão natural como a pulsação do coração e que, sob certo ponto de vista, ele constitui uma maneira de ser peculiar e até mesmo uma cultura própria, se por cultura se entender um complexo de tendências, comportamentos, tradições e aspirações, de constância no tempo e com unidade no espaço.


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